Tribunal decide que aplicativo de carona rodoviária não é serviço público

Em mais um capítulo da discussão jurídica sobre os limites da intervenção estatal na economia compartilhada, TJPR revoga a proibição de aplicativo.

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Síntese

Em fevereiro deste ano, o TJPR suspendeu decisão de primeira instância que havia proibido a empresa BlaBlaCar de oferecer o serviço de caronas rodoviárias no território paranaense. Por meio desse serviço, motoristas disponibilizam a terceiros vagas ociosas de seus carros em viagens rodoviárias, em troca do pagamento de um valor destinado a cobrir parcela das despesas da viagem (combustível, manutenção, etc.).

Comentário

Em dezembro de 2024, liminar proferida pela 1ª VFP/Curitiba proibiu a empresa BlaBlaCar de oferecer caronas solidárias no Paraná. A decisão afirmou que a plataforma não promoveria caronas, mas sim “transporte coletivo intermunicipal de passageiros de forma irregular”: a atividade seria, na realidade, uma operação comercial visando à “obtenção de lucro”. 

A empresa então interpôs recurso (n.º 0132560-45.2024.8.16.0000), no qual requereu a suspensão dessa decisão. O pedido foi deferido pelo TJPR.

Trata-se de mais um capítulo de uma discussão jurídica que se estende no Brasil há quase uma década: o enquadramento legal da atividade prestada pelos chamados aplicativos de mobilidade. Utilizados por grande parte da população, esses aplicativos nada mais são do que soluções tecnológicas que conectam fornecedores de transporte a passageiros, geralmente mediante o pagamento de uma comissão à plataforma.

Até recentemente, praticamente toda atividade voltada ao transporte de passageiros no Brasil era fortemente regulada pelo Estado e, em geral, qualificada como serviço público. De acordo com o art. 175 da Constituição, a prestação desses serviços depende sempre de delegação estatal, via concessão ou permissão. É o caso, por exemplo, do transporte coletivo urbano e do transporte interestadual de passageiros. Outras atividades eram consideradas serviços de utilidade pública, sujeitas a uma regulação menos intensa, mas ainda dependente de autorização estatal (ex.: táxi).

Na década passada, no entanto, começaram a operar no Brasil soluções tecnológicas que desafiavam esse paradigma, intermediando veículos e passageiros sem depender de autorização ou intervenção estatal. Trata-se de aplicativos voltados, entre outros, à mobilidade urbana (ex.: Uber, 99), à oferta de ônibus via fretamento (ex.: Buser) e ao compartilhamento de despesas em viagens rodoviárias (ex.: BlaBlaCar).

Embora cada um desses casos tenha a sua peculiaridade, há uma linha que os une: em todas essas situações, players já estabelecidos no mercado buscaram se utilizar do Judiciário para proibir as atividades dessas plataformas. Um dos principais argumentos utilizados nesse sentido foi o de que elas prestariam clandestinamente atividades legalmente enquadradas como serviço público – e, portanto, concorreriam de forma desleal com empresas e/ou pessoas físicas delegatárias dessa espécie de serviço.

As decisões judiciais sobre o ponto costumam ser favoráveis às plataformas. Há, no entanto, exceções notáveis. Algumas são recentes: em dezembro de 2024, por exemplo, decisão do TRF6 proibiu o aplicativo Buser de operar no Estado de Minas Gerais, considerando-o como “transporte clandestino, incompatível com o regime jurídico aplicável aos serviços públicos delegados” (n.º 1027611-88.2020.4.01.3800).

É nesse contexto que se enquadra a decisão analisada. O TJPR considerou que a atividade desenvolvida pela BlaBlaCar não se sujeita ao regime jurídico do transporte intermunicipal de passageiros – e não necessita, portanto, de qualquer espécie de autorização estatal para seu funcionamento. Em se tratando de atividades diferentes entre si, não haveria concorrência entre uma e outra.

A decisão se baseou em quatro argumentos:

  1. A carona solidária não se enquadra no conceito de “transporte coletivo intermunicipal”
    Vários aspectos práticos foram mencionados para embasar essa conclusão – por exemplo, o fato de várias rotas atendidas pelas caronas não serem cobertas pelo serviço de transporte rodoviário. Mesmo nos casos em que essa cobertura existe, o transporte coletivo costuma envolver paradas e conexões inexistentes nas caronas. 
  2. O serviço prestado pelas plataformas é de intermediação, não de transporte
    O TJPR notou que a empresa “não oferece transporte público”, apenas “exerce atividade em plataforma virtual que conecta pessoas para compartilhamento de viagens e deslocamentos”. Esta, aliás, “sequer possui veículos próprios destinados a oferecer carona”.
  3. A maioria dos motoristas não utiliza a plataforma como meio de trabalho
    Afirmou-se que “o uso do aplicativo por motoristas como atividade laborativa habitual é exceção”. Isto é: a grande maioria dos motoristas usa a plataforma apenas para complementar os custos de trajetos que já realizariam de toda forma, e não para auferir renda. O argumento é válido para os aplicativos de carona rodoviária, mas dificilmente poderia ser empregado para as plataformas de mobilidade urbana (ex.: Uber, 99), nas quais a grande maioria dos condutores acaba por se utilizar do aplicativo como fonte de renda principal.
  4. A proibição não produziu efeitos práticos
    Constatou-se que, mesmo no período em que a utilização do aplicativo estava proibida, “as caronas continuam a ocorrer” –a decisão judicial eliminou apenas a oferta do serviço, mas não a demanda por ele existente. A atividade antes realizada por meio do aplicativo passou a ser combinada diretamente pelos usuários, via grupos de WhatsApp e Facebook. Não bastasse, a proibição levou ao surgimento de um novo aplicativo similar no Paraná.

Ao permitir a continuidade das atividades da plataforma e afastar as caronas solidárias do regime jurídico de direito público, o TJPR acabou por ressaltar a importância de uma interpretação moderna e adaptável do conceito de serviço público. Novas modalidades de serviço nem sempre se enquadram em uma legislação muitas vezes defasada, e o enquadramento jurídico dessas atividades deve sempre considerar as rápidas transformações do mercado e as demandas da população. Com o rápido avanço da tecnologia, trata-se de um debate que certamente promete se intensificar nos próximos anos.

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