Desde o final de 2019, o mundo enfrenta uma grave crise de saúde em razão da Covid-19, a qual, além de vitimar mais de quatro milhões de pessoas, vem impactando diversos aspectos da vida em sociedade. No Brasil, esse quadro se agrava, já que a crise da Covid-19 se desenvolve em um cenário político marcado pela extrema polarização, no qual a verdade e a ciência são constantemente ignoradas.
Antes mesmo de seu início, o tema da vacinação contra a Covid-19 já fazia parte do debate público, especialmente por um de seus elementos: a compulsoriedade das vacinas. Essa discussão ganhou uma grande repercussão na vida nacional, em muito partindo de concepções equivocadas (e, por vezes, que beiram a má-fé) sobre a real acepção jurídica da compulsoriedade da vacinação.
Antes de tudo, é preciso reconhecer que a previsão legal da compulsoriedade de algumas vacinas não é recente: a Lei n.º 6.259/1975, que instituiu o Plano Nacional de Imunizações, dispõe que nele poderão estar previstas vacinações de caráter obrigatório. Foi com a Lei n° 13.979/2020, porém, que a discussão ganhou destaque, tendo em vista que seu artigo 3º, III, d, determina que para o enfrentamento da crise de saúde pública originada a partir da Covid-19, as autoridades públicas poderão determinar a realização compulsória de vacinação.
Mas, afinal, o que significa dizer que uma vacina é compulsória? Ao contrário da desinformação amplamente difundida, a vacinação compulsória não guarda nenhuma relação com a vacinação forçada, hipótese na qual a aplicação da vacina ocorre de forma coercitiva, independentemente do consentimento dos indivíduos que as recebem. Na prática, a compulsoriedade de uma vacina autoriza tão somente que o Poder Público implemente medidas indiretas para aumentar o alcance da vacinação, as quais compreendem, dentre outras, a restrição ao exercício de certas atividades ou à frequência de determinados lugares àqueles que não se imunizaram.
Recentemente, o tema da vacinação compulsória foi o pano de fundo de alguns julgados do Supremo Tribunal Federal – STF, com destaque para as ADIs 6.586/DF e 6.587/DF, as quais discutiram a constitucionalidade do supracitado artigo 3°, III, d, Lei n.° 13.979/2020. Além de confirmar que a vacinação compulsória é constitucional, o STF tratou de alguns elementos relevantes ao julgar essas ações, especialmente no tocante à necessária observância do princípio da legalidade e à importância do caráter compulsório da vacinação, tendo em vista a dimensão coletiva das vacinas.
Nesse sentido, o STF destacou que a vacinação compulsória pode ser implementada por meio de medidas indiretas, desde que estas últimas sejam previstas em lei ou dela decorram. Essa ressalva deriva do princípio da legalidade, estampado no artigo 5º, II, da Constituição, o qual garante que ninguém precisa se submeter a qualquer vontade que não a da lei, e, mesmo assim, desde que ela seja formal e materialmente constitucional.
Além disso, o STF destacou o aspecto coletivo do benefício das vacinas, vez que “a vacinação em massa da população constitui uma intervenção preventiva, apta a reduzir a morbimortalidade de doenças infeciosas transmissíveis e provocar imunidade de rebanho, fazendo com que os indivíduos tornados imunes protejam indiretamente os não imunizados”. O aspecto coletivo das vacinas foi um dos elementos utilizados para justificar a compulsoriedade da vacinação, na medida em que esse é um instrumento importantíssimo para assegurar o direito à saúde, consagrado pelo artigo 196 da Constituição.
Dito de outra forma, a vacinação compulsória é uma ferramenta importante para o controle de várias pandemias, como a originada a partir da Covid-19. Isso tendo em vista que as vacinas são uma técnica de saúde coletiva, ou seja, uma sociedade somente está protegida quando um grande percentual de seus integrantes está vacinado, razão pela qual é importante que o Poder Público adote ações para aumentar o alcance da vacinação, entre as quais as medidas indiretas que caracterizam a vacinação compulsória. É preciso, porém, que essas medidas indiretas estejam previstas em lei, sem o que há ofensa ao princípio da legalidade que não se pode desprezar.