O início de 2022 dá sinais efetivos de que a saúde suplementar precisa de uma intensa revisão. Talvez a expressão mais adequada seja reinvenção. Destaco aqui os quatro sinais: (i) a desaprovação da venda da carteira de planos individuais da AMIL; (ii) a edição da Lei nº 14.307/2022, modificadora da dinâmica da atualização do rol de procedimentos e eventos de cobertura obrigatória dos planos de saúde; (iii) o julgamento no STJ sobre o caráter taxativo ou exemplificativo do referido rol; (iv) a constatação, pelo CADE, da diminuição da concorrência setorial.
Esses episódios escancaram a enorme tensão do setor da saúde suplementar. Dentre todos os casos, é o da carteira de planos individuais da AMIL que mais revela a turbulência setorial. Segundo a ANS, a operação de transferência de carteira, até então, não apresenta segurança suficiente, em especial para os beneficiários desses planos. A posição da ANS é um reconhecimento de que as operadoras, já há algum tempo, veem pouca atratividade nos contratos individuais e familiares.
A insatisfação com o modelo da saúde suplementar não é exclusividade das operadoras. Os beneficiários comungam desse sentimento, mas por razões distintas. A principal evidência disso é o julgamento do STJ, no qual se busca definir o caráter do rol de procedimentos e eventos de cobertura obrigatória da ANS. Sabe-se que as operadoras devem sempre cobrir todas as doenças que sejam classificadas como tal pela OMS. A função do rol é definir as alternativas terapêuticas dessa cobertura que devem obrigatoriamente estar disponíveis ao beneficiário. Após duas décadas de discussão, o STJ avança para a definição do caráter desse rol; se taxativo (dispensando as operadoras da cobertura de procedimentos nele não inseridos) ou exemplificativo (de caráter orientativo, mas sempre privilegiando aquilo que o médico assistente do beneficiário compreender como mais adequado para o caso).
A elaboração desse rol, de competência técnica da ANS, leva em conta inúmeros critérios, com destaque para a eficácia do tratamento/procedimento e seu impacto na equação econômico-financeira dos contratos de planos de saúde. Uma das críticas mais relevantes a respeito desse rol era a periodicidade bianual de sua atualização. A questão foi resolvida com a edição da Lei nº 14.307/2022, que reduziu esse prazo para seis meses. Além disso, otimizou outras formas de atualização, como a incorporação, em até dois meses, de tecnologias assimiladas no âmbito de cobertura do SUS.
As discussões (legislativa e judicial) envolvendo o rol da ANS culminam num ponto central: a ampliação do número de prestadores e consumidores de planos de saúde. Somente esse fato justifica a função social do setor (para além do mero exercício da livre-iniciativa), cuja regulação se revela como política social e econômica estatal, voltada a garantir que fatia significativa da demanda pública de saúde migre para a saúde suplementar, permitindo, com isso, a concentração dos recursos públicos para a parcela da população mais necessitada (vide artigo 196 da Constituição). Mas, o número de beneficiários cresce pouco. Naquilo que cresce, tem-se que se dá pela lógica de seleção adversa: as pessoas não escolhem ter planos de saúde, mas decidem fugir dos riscos atrelados ao consumo da prestação pública.
Sobre a concorrência entre prestadores, segundo constatação recente do CADE, o mercado da saúde suplementar está cada vez mais concentrado nas mãos de poucos atores, fato que a diminui. Assumir os riscos pouco certos da operação da saúde suplementar exige fôlego financeiro e capacidade de diluição desse risco, alternativa viável somente quando a operadora o distribui em um grande número de vidas seguradas.
Diante desse cenário, a turbulência do setor pode até passar. Mas isso não significará sua evolução. Evoluir significa atender em maior grau sua missão principal de captura de parcela da demanda pública. Por isso, muito provavelmente, os problemas revelados com essa turbulência seguirão existindo: alta judicialização; baixo crescimento de prestadores; concentração dos produtos coletivos em detrimento dos individuais. Esse é um recado claro, tanto para o legislador quanto para o regulador, de que o modelo precisa ser reinventado.
A reinvenção deve passar para própria alteração daquilo que deve estar debaixo do guarda-chuva da ANS. A agência deveria ter sob sua tutela regulatória toda atuação que poderia, em quantidade significativa, diminuir a demanda por serviços públicos de saúde. Atualmente, a porta para a entrada de novos atores regulados é por demais restrita, em especial porque o produto plano de saúde tem baixíssima flexibilidade. Há inegavelmente uma regra de 08 ou 80, fato que limita o acesso e diminui a concorrência.
Tantos outros mercados vivem uma evolução regulatória muito ligada às novas tecnologias. Mas, na saúde suplementar, há pouco lugar para startups e healthtechs, por exemplo. Não fosse a pandemia, certamente os próprios benefícios da telessaúde ainda estariam engatinhando no setor. As diretrizes de proteção e prevenção da saúde, fundamentais para uma gestão de qualidade, seguem também com baixo nível de preocupação na prestação suplementar.
A agenda legislativa para o setor precisa ter esses temas como foco. Os players devem compreender que a evolução tecnológica não irá esperar sua vontade para a elas se conectar. Se o mercado regulado seguir fechado, a concorrência externa e não regulada irá pressionar e ganhar espaço. Viu-se isso em tantos outros setores, como transporte e telefonia. Por isso, a ANS precisa também de uma agenda regulatória que dê a ela atuação mais rica em temas desse perfil, permitindo que haja a tão desejada evolução setorial e a relevante contribuição para a saúde pública.