O projeto da concessão da ponte binacional que liga São Borja, no Brasil, a Santo Tomé, na Argentina, pelo Rio Uruguai, tem mobilizado autoridades federais, investidores e órgãos de controle. Por ser estratégica para o escoamento de mercadorias e a integração logística entre os dois países, a travessia representa um elo importante do corredor bioceânico, ligando o Atlântico ao Pacífico. No entanto, as tentativas de concessão enfrentam obstáculos que têm adiado a concretização do leilão e suscitado questionamentos sobre sua modelagem.
Desde 1997, a ponte opera por meio de um modelo de permissão com vigência prevista até o ano que vem. O novo projeto, formulado pelo governo brasileiro, propõe a substituição do atual regime por um contrato de concessão de longo prazo, com a realização de investimentos em infraestrutura, modernização da estrutura alfandegária e melhorias operacionais, como parte de um esforço mais amplo de reestruturação das concessões rodoviárias federais.
A proposta prevê um contrato de 30 anos, com tarifa de pedágio atualizada e expectativa de R$ 300 milhões em investimentos. Porém, mesmo com a publicação do edital pelo Ministério dos Transportes, o leilão previsto para ocorrer no último mês de abril foi cancelado. Nenhuma proposta foi apresentada, configurando o chamado “leilão deserto” (cenário que não é incomum em projetos com dúvidas de viabilidade econômica ou riscos regulatórios mal endereçados).
Antes disso, em janeiro, o Tribunal de Contas da União (TCU), no exercício de sua competência de controle prévio, já havia analisado o edital da concessão e apontado diversas inconsistências que fundamentaram a suspensão cautelar da licitação.
Entre os principais pontos destacados estavam a (a) subavaliação de riscos: o TCU observou que o edital não considerava de forma adequada riscos relacionados à demanda, variações cambiais e a complexidade da cooperação internacional com a Argentina; as (b) falhas na matriz de riscos: havia indefinições sobre a responsabilidade por passivos trabalhistas e eventuais passivos ambientais; o (c) modelo econômico-financeiro: o tribunal considerou que as projeções de tráfego e receitas apresentavam inconsistências e estavam baseadas em premissas excessivamente otimistas, o que poderia comprometer a atratividade do projeto; e a (d) falta de articulação internacional: a ausência de um acordo claro entre os dois países sobre os termos da concessão gerava insegurança jurídica, especialmente sobre a operação conjunta da ponte e dos controles alfandegários.
Diante disso, o TCU entendeu que a realização do leilão nos moldes propostos poderia resultar em um contrato desequilibrado, com risco elevado de inadimplência ou necessidade de reequilíbrios futuros, impactando negativamente o interesse público.
Embora o leilão deserto e a suspensão determinada pelo TCU possam ser vistos, à primeira vista, como revés para a política de concessões federais, também representam uma oportunidade valiosa de reavaliar o projeto. Leilões fracassados servem como termômetro de mercado, indicando pontos que exigem revisão — seja na precificação dos ativos, no desenho contratual ou na alocação de riscos.
No caso da ponte São Borja-Santo Tomé, a reformulação do edital pode incluir uma melhor definição da articulação binacional, reforço de garantias contratuais, clareza nos parâmetros alfandegários e uma revisão das estimativas de demanda. Além disso, o governo pode ampliar o diálogo com potenciais operadores e incluir mecanismos mais eficientes de mitigação de risco, como seguros de receita mínima ou bônus de outorga reversa.
Revisitar o mercado com uma proposta mais robusta, transparente e com riscos mais bem distribuídos tende a aumentar a atratividade do ativo e permitir a entrada de players com maior apetite e capacidade técnica. O fracasso inicial, portanto, não precisa ser o fim do projeto, mas o ponto de inflexão necessário para uma solução mais madura e sustentável, que atenda às expectativas do governo, da sociedade e do setor privado.