O Regulamento das Concessões Rodoviárias: uma nova linguagem regulatória para o setor rodoviário federal

Entenda o que é o Regulamento das Concessões Rodoviárias (RCR) e qual será o seu impacto nos contratos anteriores.

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O histórico das concessões rodoviárias federais no Brasil revela um setor que se desenvolveu à custa de múltiplas camadas contratuais. Cada ciclo do Programa de Concessões de Rodovias Federais foi moldado por diferentes contextos políticos, econômicos e regulatórios, resultando em uma colcha de retalhos normativa. Ao longo dos anos, acumulou-se um estoque de mais de 20 contratos distintos, regidos por regras específicas e, não raro, contraditórias entre si. Esse cenário, ainda que compreensível do ponto de vista histórico, revelou-se disfuncional. A fragmentação normativa elevava os custos de regulação, gerava insegurança jurídica e impunha obstáculos operacionais às concessionárias e à própria ANTT. O resultado era um sistema gerencialmente pesado, juridicamente instável e economicamente ineficiente.

Foi nesse contexto que nasceu a ideia do Regulamento das Concessões Rodoviárias (RCR), um conjunto normativo unificado, estruturado em, atualmente, cinco resoluções temáticas (RCR1 a RCR5), que busca superar as distorções históricas do modelo regulatório anterior. Mais do que uma simples codificação de regras, o RCR representa uma guinada na lógica da regulação: sai de cena a predominância contratual como fonte normativa central e ganha protagonismo a regulação infralegal centralizada pela ANTT. Trata-se de um novo paradigma em que a agência assume um papel mais ativo na definição e atualização de normas gerais, em linha com a ideia de um microssistema normativo estável, previsível e tecnicamente orientado.

O conteúdo do RCR

A primeira resolução do conjunto, a RCR1 (Resolução ANTT nº 5.950/2021), estabelece as diretrizes fundacionais do novo modelo. Ao tratar de regras gerais e dos direitos dos usuários, estrutura o alicerce sobre o qual repousam as demais resoluções. Define os deveres da concessionária, os direitos dos usuários e os mecanismos formais de comunicação com a agência, introduzindo o uso prioritário de meios eletrônicos. Também institui o Comitê de Corregulação, um órgão consultivo voltado ao aperfeiçoamento normativo. O mérito da RCR1 reside na clareza e objetividade com que organiza os pilares da relação entre concessionário, usuário e regulador, promovendo previsibilidade e fortalecendo a transparência institucional.

A RCR2 (Resolução ANTT nº 6.000/2022), por sua vez, concentra-se nos bens, obras e serviços que compõem a materialidade das concessões. Aborda desde a gestão de ativos e o regramento das obras (inclusive com normatização sobre BDI e uso de sistemas de referência como SICRO/SINAPI), até a operação dos serviços (atendimento ao usuário, monitoramento, pedágio etc.). Um ponto alto da norma é a previsão de um processo “fast track” para aprovação de investimentos, além da institucionalização do verificador independente — figura essencial para aferição técnica isenta. Ao consolidar práticas que antes variavam entre contratos, a RCR2 reduz assimetrias regulatórias e aprimora a eficiência operacional das concessões.

A terceira resolução do ciclo, RCR3 (Resolução ANTT nº 6.032/2023), enfrenta o cerne financeiro dos contratos. Trata de receitas tarifárias e não tarifárias, mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro, revisões periódicas e instrumentos de incentivo, como a criação do Comitê do Recurso para Desenvolvimento Tecnológico (RDT). A norma também formaliza o uso de sistemas de cobrança do tipo free flow e confere maior protagonismo às seguradoras na alocação de riscos contratuais. Todo esse cenário resulta na expectativa de redução do tempo médio das revisões quinquenais, de 22 para 10 meses, com ampliação da participação social, além da flexibilização para geração de receitas acessórias. O objetivo é claro: fomentar uma regulação financeira mais fluida, responsiva e menos litigiosa.

O pilar da fiscalização e das penalidades é estruturado pela RCR4 (Resolução ANTT nº 6.053/2024). A norma avança na sofisticação dos mecanismos de supervisão ao introduzir modelos de fiscalização por risco e instrumentos não litigiosos, como o TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) e o Acordo Substitutivo de Multas, que permite a conversão de penalidades pecuniárias em investimentos. Além disso, inova ao classificar anualmente as concessionárias com base em seu desempenho, criando um sistema regulatório mais responsivo, em que o rigor da fiscalização varia conforme o histórico e o comportamento do regulado. Também é prevista a figura do Regime de Recuperação Regulatória, que oferece uma alternativa à caducidade para contratos com desempenho insatisfatório.

Encerrando o ciclo, a RCR5 (Resolução ANTT nº 6.063/2025) trata dos meios de extinção contratual e, mais do que isso, da integração entre as normas anteriores. Ela disciplina o encerramento do contrato sob diversas modalidades — vencimento, encampação, caducidade, rescisão —, detalha a reversão de bens, o cálculo de indenizações e a prorrogação contratual. Um destaque é a criação da figura da “concessão de transição”, que permite a continuidade dos serviços entre o fim de um contrato e o início de outro. Mas seu papel mais estratégico talvez esteja na função integradora: a RCR5 altera trechos das normas anteriores, costurando o conjunto em um corpo coeso. Garante, assim, a unidade do microssistema RCR.

A adesão dos contratos anteriores ao RCR

A consolidação do RCR, porém, ainda depende de um passo crucial: a adesão das concessionárias com contratos antigos. Essa adesão é voluntária, mas a ANTT tem buscado promover seus benefícios com vigor. Workshops, cartilhas e negociações com empresas, órgãos de controle e financiadores têm sido os principais instrumentos da agência para incentivar a migração. O sucesso dessa etapa determinará, em grande medida, se o RCR se firmará como uma verdadeira plataforma regulatória nacional — ou se permanecerá como um ideal parcialmente alcançado.

O impacto do RCR vai além da mera padronização. Ele reflete uma mudança de mentalidade: da multiplicidade contratual para a normatização central; do punitivismo tradicional para a regulação responsiva; do improviso histórico para a previsibilidade institucional. É um movimento de maturação regulatória. Resta saber se esse novo modelo será internalizado por todas as partes envolvidas — inclusive pelos órgãos de controle, que também precisarão rever suas matrizes analíticas diante do novo ambiente regulatório. A aposta da ANTT é ambiciosa, mas realista: construir uma regulação mais estável, clara e adaptável. Caso se concretize, o RCR poderá se tornar referência para outros setores da infraestrutura pública brasileira.

Há uma aposta clara nos ganhos de eficiência e segurança jurídica como motor dessa adesão voluntária. A possibilidade de certificação acreditada para a comprovação de obrigações contratuais, por exemplo, reduz a necessidade de fiscalização exaustiva e transfere para as concessionárias a responsabilidade de manter registros técnicos auditáveis. Outros atrativos incluem maior flexibilidade na exploração de receitas acessórias e um sistema de fiscalização mais calibrado, menos centrado em punições automáticas e mais voltado à indução de comportamentos desejados.

As revisões quinquenais surgem como outro vetor relevante para a difusão do RCR. Ainda que a adesão plena dependa de acordo específico, é possível, durante essas revisões, incorporar elementos do regulamento ao contrato original, promovendo uma atualização indireta, mas significativa. A própria ANTT já iniciou esse processo em contratos vigentes, associando os novos parâmetros de desempenho técnico – como os critérios de qualidade de pavimento nos termos da Instrução Normativa nº 34/2024 – às normas do RCR.

Isso demonstra que a agência está disposta a trabalhar em múltiplas frentes para implementar, de forma gradual e negociada, seu novo modelo. E tal cautela é necessária. Considerando que os contratos já celebrados consistem em ato jurídico perfeito que assegura diversos direitos e deveres às partes, a alteração desse conjunto depende necessariamente da concordância tanto do contratante quanto do contratado.

Vale ressaltar que a proposta regulatória do RCR também dialoga com tendências contemporâneas da regulação pública, especialmente com o modelo da regulação responsiva. Em vez de adotar uma postura punitivista rígida, a ANTT busca modular sua atuação conforme o comportamento e a performance das concessionárias. Concessionárias com bom desempenho, por exemplo, podem ser submetidas a uma fiscalização mais leve, ao passo que aquelas em situação crítica podem ser enquadradas no Regime de Recuperação Regulatória, que prevê acompanhamento especial e medidas estruturantes para evitar a extinção precoce dos contratos. Isso permite à agência alocar seus recursos de forma mais eficiente, focando onde há maior risco e necessidade de intervenção.

Por outro lado, os grandes impactos da nota atribuída a uma concessão tornam necessária grande cautela na estipulação e aplicação das regras de classificação das concessionárias. É necessário que a classificação efetivamente propicie a melhor prestação do serviço e o atendimento ao usuário, com reais possibilidades de recuperação da concessionária nos casos em que for necessário.

Perspectivas futuras

O impacto potencial do RCR é expressivo. A simplificação normativa, a transparência reforçada e os incentivos à inovação e ao consenso prometem tornar as concessões rodoviárias mais eficientes, menos litigiosas e mais atraentes para o investimento privado. A lógica do microssistema normativo, em que o regulamento ocupa o espaço que antes era preenchido por cláusulas extensas e personalizadas, pode servir de modelo para outros setores, como ferrovias, portos e até mesmo parcerias público-privadas em áreas sociais. A experiência acumulada pela ANTT nesse processo tem potencial para irradiar boas práticas e contribuir para a construção de um novo padrão regulatório no país.

O RCR é, portanto, mais do que um conjunto de normas técnicas. Ele representa uma nova linguagem institucional para a regulação do setor rodoviário, marcada por clareza, diálogo e flexibilidade. Seu êxito dependerá da capacidade da ANTT de sustentar o processo de transição com competência técnica, abertura ao diálogo e firmeza estratégica. Mas, se bem-sucedido, poderá redefinir as bases da relação entre Estado e concessionárias, em benefício da infraestrutura, dos usuários e do interesse público.

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