Os limites da farmacovigilância e o caso Elevydis: desafios para a indústria farmacêutica

Suspensão do Elevidys após dois óbitos reabre debate sobre riscos vivenciados pela indústria farmacêutica.

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O desenvolvimento de medicamentos para doenças raras, como a Distrofia Muscular de Duchenne (doença genética grave, que faz com que os músculos se tornem progressivamente fracos), exige ousadia científica, grande investimento financeiro e, acima de tudo, firme compromisso com a segurança do paciente. É nesse contexto que surge o Elevidys (delandistrogene moxeparvovec), uma inovadora terapia gênica aprovada pela Anvisa em dezembro de 2024 para pacientes pediátricos deambuladores (isto é, portadores da enfermidade, mas ainda aptos a se locomover de forma independente) entre 4 e 7 anos.

O medicamento baseia-se na introdução de um gene funcional capaz de promover a produção da microdistrofina, uma versão encurtada da distrofina, proteína essencial à integridade muscular. Estudos clínicos demonstraram ganhos funcionais relevantes e sustentados, além de aumento mensurável da expressão proteica. No entanto, em junho de 2025, a Roche, fabricante do Elevidys, anunciou a suspensão do uso do produto em pacientes não deambuladores após dois casos de insuficiência hepática aguda com desfecho fatal, ambos ocorridos fora do Brasil. O segundo caso, envolvendo um adolescente de 15 anos, desencadeou a recomendação oficial para interrupção do uso em tais pacientes.

Importante destacar que tais eventos ocorreram em grupo populacional para o qual o uso do medicamento não está autorizado no Brasil, restringindo-se, conforme a bula registrada na Anvisa, a pacientes deambuladores entre 4 e 7 anos. Portanto, sob o ponto de vista jurídico, não se verifica conduta omissiva, comissiva ou culposa da empresa que justifique responsabilização civil objetiva ou subjetiva. A atuação da Roche, ao recomendar a suspensão do uso off label fora da indicação autorizada, demonstra observância ao princípio da precaução, amplamente aceito na jurisprudência sanitária nacional e internacional.

Além disso, a ocorrência de efeitos adversos graves não configura, por si só, falha no dever de segurança do fornecedor, conforme previsto no art. 12 do Código de Defesa do Consumidor, especialmente em se tratando de medicamentos inovadores, com riscos devidamente informados na bula e nos materiais técnicos distribuídos aos profissionais e pacientes. A lesão hepática aguda, inclusive, já constava como risco descrito, com recomendações expressas para o monitoramento clínico e laboratorial, incluindo regimes de corticosteroides e exames periódicos após a infusão.

A concessão do registro sanitário do Elevidys se deu sob regime de exceção, conforme as regras da RDC nº 505/2021 da Anvisa, destinadas à aprovação de produtos para doenças raras com alta gravidade e ausência de alternativas terapêuticas. Esse marco regulatório prevê o registro condicional, com exigência de monitoramento em longo prazo e apresentação de dados adicionais pós-comercialização. Portanto, a agência atuou dentro da legalidade e da competência conferida pela Lei nº 6.360/76 e pela Lei nº 9.782/99, observando os princípios da razoabilidade e da proteção à saúde pública.

Ademais, a Roche firmou Termo de Compromisso com a Anvisa prevendo estudos observacionais no Brasil e acompanhamento clínico por até 15 anos, o que reforça o cumprimento das obrigações impostas pelo sistema jurídico-sanitário.

Por outro lado, a controvérsia levanta importante debate bioético e jurídico: qual o limite da responsabilidade, quando se busca inovação em cenários de altíssimo risco? Em situações como esta, o princípio da solidariedade no Sistema Único de Saúde (SUS), previsto no art. 196 da Constituição Federal, impõe uma divisão equilibrada de deveres entre indústria, Estado, corpo clínico e sociedade. A ausência de alternativas terapêuticas eficazes confere legitimidade à adoção de terapias emergentes, desde que acompanhadas de protocolos bem definidos de segurança.

Não se trata de ignorar os efeitos adversos, mas de compreender que a ausência de tratamento também representa risco concreto. A judicialização da saúde, neste caso, não pode ser instrumento de condenação automática da indústria, sobretudo quando o uso se dá fora da indicação legalmente aprovada. A responsabilidade civil deve ser analisada sob o prisma técnico e jurídico, e não como reflexo direto da comoção social.

A inovação exige vigilância, mas também confiança. O caso Elevidys mostra que a farmacovigilância não é apenas um dever, mas um mecanismo dinâmico de diálogo entre ciência, direito e ética. Suspender o uso fora das indicações autorizadas não é um sinal de fracasso, mas sim de maturidade institucional e responsabilidade jurídica.

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