Concessões rodoviárias e o risco do ouro de tolo

Recentes decisões sobre habilitação em leilões e implementação do sistema de free flow acendem luzes amarelas em meio ao boom de projetos do setor

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O ano de 2025 caminha para o final confirmando a expectativa de que vivemos, enfim, a “Era de Ouro” das concessões rodoviárias no Brasil. A vitrine de leilões trouxe lotes de diferentes portes, perfis e geografias, capazes de atrair operadores tradicionais, fundos de investimento, instituições financeiras e construtoras médias. A pluralidade de proponentes é, por si só, um indicador de maturidade do mercado.

Entretanto, como alertei em recente artigo e vídeo na seção “Argumento Pocket” do Vernalha Pereira, é preciso cuidado para que a profusão de certames não se converta na “maldição da exuberância irracional”. A euforia desmedida costuma mascarar riscos e estimular lances agressivos, desconectados de premissas realistas que emergem, invariavelmente, na fase de execução. Quando o apetite supera a diligência, a conta chega em forma de CAPEX mal calibrado, fluxos de caixa subestimados, contencioso regulatório e renegociações precoces – um roteiro conhecido, cujo desfecho corrói a confiança sistêmica.

Para evitar este cenário, duas medidas profiláticas citadas por mim naquela ocasião se mostraram mais urgentes do que parecera à primeira vista: (i) o fortalecimento de uma curadoria rigorosa e transparente das condições de habilitação nas licitações; (ii) a consolidação de uma arquitetura normativa e institucional robusta, capaz de lastrear inovações regulatórias e operacionais que já saíram do laboratório e entraram na pista.

Em ambas as frentes, episódios recentes chancelam esta percepção. No plano da habilitação, casos como os dos Lotes Rota da Celulose, Rota Agro e Ponte Binacional São Borja/São Tomé expuseram quão relevante é a construção de um filtro editalício capaz de – sem incorrer, por óbvio, em qualquer vício de legalidade – separar convicção de voluntarismo. Não se trata de erguer barreiras artificiais, mas de calibrar requisitos técnicos, operacionais e financeiros que impeçam a entrada de aventureiros – ou de players que, mesmo bem-intencionados, parecem não possuir standards mínimos para performarem como futuras concessionárias.

Em outras palavras, é preciso, portanto, cercar o edital de condições de contorno que, sem ferir isonomia e competitividade, erijam verdadeiros cordões sanitários de legalidade, preservando a higidez do certame e blindando a execução contratual que virá. Ainda que o preço a pagar seja o da inabilitação de um licitante – como se deu nas decisões proferidas no âmbito das concorrências acima exemplificadas –, o custo de transação é substancialmente menor que o de celebrar contrato com amplo potencial de inexecução.

No plano regulatório-institucional, por sua vez, o free flow fez emergir o teste de estresse do momento. A transição do modelo de praças para a cobrança por livre passagem não é um capricho tecnológico: ela fomenta justiça tarifária, suprime gargalos, melhora a segurança, e é benéfica ao meio ambiente. Essas virtudes, no entanto, parecem pouco sedutoras a quem, pela primeira vez, vê uma tarifa – ainda que pequena – materializar-se onde antes havia apenas a sensação de “gratuidade”.

O resultado é um caldo político que atravessa ideologias e, frequentemente, desloca o debate técnico para o palco judicial. A título exemplificativo, a recente decisão da 6ª Vara Federal de Guarulhos – que vedou a aplicação de multa por inadimplemento da tarifa em trecho da Rodovia Presidente Dutra na Região Metropolitana de São Paulo, onde será implantado em breve o sistema de free flow – ilustra bem esse atrito. De um lado, União e ANTT sustentaram o caráter indispensável da penalidade como mecanismo de enforcement do free flow, inclusive desenhando fases educativas e de adaptação. De outro, o Juízo reputou excessiva a equiparação entre mera inadimplência e evasão de pedágio, leitura que traz instabilidade à coerência do arranjo e, por consequência, à sustentabilidade econômico-financeira da concessão.

O ponto aqui não é recontar fundamentos da sentença, mas realçar seu efeito sistêmico: quando os mecanismos legais e institucionais de cobrança de pedágio são enfraquecidos, a sinalização de risco piora, a inadimplência tende a crescer – experiências internacionais são pedagógicas a esse respeito –, e o fluxo de caixa dos projetos é alvejado por decisões que ignoram a matriz de riscos pactuada. O paradoxo é cruel: inviabiliza-se, em nome da proteção do usuário, justamente o instrumento que promove justiça tarifária.

A mensagem que o setor precisa transmitir com serenidade – e com dados – é simples: a legitimidade do free flow não surge de um decreto de modernidade, mas da cadeia de legalidade, regulação e contrato que o suporta. Nessa medida, sua efetividade depende, sim, de um sistema de cobrança com consequências proporcionais e razoáveis para o inadimplemento.

Ao Poder Público e às Agências cabe organizar a “pedagogia da transição”: campanhas claras, fases de adaptação críveis, centralização de pagamentos em ambientes amigáveis e interoperáveis, tratamento adequado de usuários vulneráveis e um desenho de penalidades que seja firme, jurídico e comunicável.

Ao Judiciário, por sua vez, em especial nas instâncias vocacionadas a decidir liminares de amplo impacto, impõe-se deferência institucional à regulação setorial quando estiverem presentes o devido processo regulatório, a proporcionalidade das medidas e a aderência à matriz de riscos contratual. Nada disso afasta o controle; ao contrário, apenas reforça seu alinhamento com a racionalidade do sistema.

Voltando à “exuberância”: o free flow é também um lembrete de que o bom ciclo de leilões não se sustenta sem governança de execução, regulação previsível e qualidade de players. Editais cuidadosos mitigam litígios sobre habilitação; regulamentação coerente com os contratos evita que a arena judicial redesenhe, por conta própria, incentivos e receitas; decisões prudentes preservam a perenidade dos programas de todos os entes federativos.

Estamos, sim, no apogeu dos projetos de concessão rodoviária, mas nuvens se formam no horizonte institucional. Para dissipá-las, cada ator deve exercer, com altivez e eficiência, o papel que lhe cabe: poderes concedentes e agências na curadoria e na clareza procedimental; concessionárias na transparência operacional e na prestação de contas; órgãos de controle no escrutínio técnico e proporcional; e Judiciário na contenção que prestigia o desenho regulatório quando ele se mostra legítimo.

Se essa partitura estiver afinada, a carteira vigente será executada com estabilidade, e as próximas gerações de licitações virão com a atratividade que um mercado maduro exige. Do contrário, o risco é trocarmos a “Era de Ouro” pela ilusão do “ouro de tolo” – brilhante à primeira vista, mas opaco e sem valor a longo prazo. 

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