O impacto da estiagem no setor de saneamento: novos paradigmas jurisprudenciais

Período de estiagem não é causa para afastamento de responsabilidade de concessionária por interrupção no fornecimento de água.
Diego-Ikeda

Diego Ikeda

Advogado

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Síntese

O entendimento jurisprudencial a respeito da responsabilidade das empresas concessionárias de serviço público de saneamento, especificamente por interrupção no fornecimento de água, vem sendo alterado para desconsiderar período de estiagem como fato imprevisível.

Comentário

O ano de 2021 foi marcado por longo período de estiagem em diversas regiões do Brasil e, consequentemente, interrupções no fornecimento de água pelas empresas concessionárias de saneamento. O website de monitoramento de secas (https://monitordesecas.ana.gov.br/mapa) demonstra que há anos o País não sofria de longo período de fortes secas como ocorreu em 2021.

Apesar do Brasil ser um dos países mais privilegiados em riqueza hídrica, alguns estudos consideram que o País passou pela pior seca dos últimos 91 anos. As consequências dessa situação ambiental acabaram refletindo em diversos setores e os prejuízos repassados aos consumidores finais de produtos e serviços. Dentre eles, podemos citar o aumento do preço da comida, energia elétrica e interrupções no fornecimento de água.

Diante desse contexto, surgiram diversas demandas judiciais envolvendo os consumidores e as concessionárias de serviço público objetivando a retomada do fornecimento de água, além de indenização por danos materiais e morais. Muitas empresas sustentaram que as interrupções decorreram pela forte estiagem enfrentada. Assim, diversos Tribunais acabaram se debruçando na discussão sobre a responsabilidade das empresas pela interrupção no fornecimento de água. E, neste ponto, identifica-se mudança de entendimento jurisprudencial ao longo dos anos.

A título exemplificativo, podemos citar o Tribunal de Justiça de Minas Gerais, o qual, instado a perquirir sobre o tema por ocasião do julgamento das Apelações Cíveis nº 0029954-49.2017.8.13.0684 e 0030051-49.2017.8.13.0684 ao final de 2021, decidiu que o período de estiagem não pode ser considerado como excludente de responsabilidade, principalmente se não tiverem sido adotadas medidas para minimizar transtornos dos consumidores.

Em ambos os casos ficou consignado que a estiagem e o aumento do consumo de água não constituem causas de imprevisibilidade, pois cabe à concessionária o adequado planejamento de suas ações para, mesmo diante de situação adversa, manter ininterrupto o fornecimento de água tratada aos usuários, principalmente por envolver serviço público essencial para promoção da saúde.

Ademais, os julgadores consideraram que a estiagem é um evento que deve ser considerado na adoção de medidas para prestação eficiente e contínua do serviço público. Trata-se, portanto, de risco inerente à atividade prestada.

Além disso, consignou-se que, por se tratar de evento climático previsível, com o devido investimento em toda a cadeia do serviço tal fenômeno pode ter seu impacto diminuído, senão evitado. Logo, não se enquadra nos casos de força maior, porquanto lhe cabe garantir a eficiência, a continuidade e a segurança do serviço público essencial que presta.

Nota-se mudança de entendimento dos Tribunais, sendo que há alguns anos as decisões judiciais afastavam a responsabilidade das concessionárias. Para tanto, interpretavam a estiagem como fator imprevisível, visto que alheio à atividade empresarial desenvolvida pela empresa.

Nesse sentido foi a decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul por ocasião do julgamento da Apelação Cível nº 70060845799, em maio de 2016, na qual a estiagem foi considerada como fator que escapa do controle da concessionária e, portanto, inoponível a ela. Assim, mediante decisão diametralmente oposta às mais recentes, afastou a pretensão indenizatória do consumidor.

Importante destacar que a Lei nº 8.987/1995, a qual dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos, estabelece expressamente que é dever da concessionária zelar pela modernidade das técnicas, equipamento e instalações, conservação, bem como pela melhoria e expansão do serviço. Nos termos do artigo 3º da referida Lei, admite-se a interrupção do fornecimento apenas em situações de emergência ou após prévio aviso, quando motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações e por inadimplemento do usuário.

Considerando dados estatísticos que demonstram que a estiagem vem sendo fortalecida na medida dos anos, inegável é que as empresas concessionárias de saneamento precisarão estar preparadas para longos períodos de seca para adoção de medidas preventivas ou corretivas efetivas a evitar ou reduzir a interrupção do fornecimento de água.

Caso contrário e diante da tendência das decisões judiciais, certamente responderão judicialmente pelos prejuízos suportados pelos consumidores, tanto materiais, na hipótese de gastos com aquisição de água (caminhão pipa ou galões), quanto danos morais. Apesar das indenizações não possuírem valores elevados, deve-se cogitar centenas ou até milhares de ações com o mesmo pedido, sem considerar as ações civis públicas objetivando indenização por dano moral coletivo.

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