Possibilidade da delegação do poder de polícia às sociedades de economia mista

Supremo Tribunal Federal reconhece a possibilidade do exercício de poder de polícia pelos entes da Administração Indireta com Personalidade Jurídica de Direito Privado.
Marcela-Campos-Jabôr

Marcela Jabôr

Advogada egressa

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Síntese

Reformando o posicionamento fixado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ em 2009, o Supremo Tribunal Federal – STF fixa a tese jurídica no sentido de que “é constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado, de capital social majoritariamente público, integrantes da Administração Pública indireta, que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial”.

Comentário

O poder de polícia é prerrogativa inerente à Administração Pública e à função administrativa e, nos termos do art. 78 do Código Tributário Nacional, afigura-se como a atividade por meio da qual o Poder Público pode restringir direitos e liberdades individuais, regulando a prática de ato ou abstenção de fato.

Ocorre que a organização da Administração Pública brasileira é complexa e, nos termos da Constituição da República de 1988 (art. 173, § 1º), para além da descentralização em entes com personalidade de Direito Público (autarquias e fundações públicas), também é possível a criação de entes da Administração Indireta com personalidade jurídica de Direito Privado.

Não há dúvidas de que, sendo pessoa jurídica pertencente à estrutura administrativa, Administração Direta ou Indireta, há incidência do regime de Direito Público. Contudo, como os entes da Administração Indireta têm, de acordo com o propósito e características da lei que os cria ou autoriza, objetivos e personalidades jurídicas distintas, o que pode variar em relação ao regime incidente sobre cada estrutura (autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista) é o que a doutrina portuguesa convencionou denominar “graus de administrativização”.

Assim, uma autarquia, por ter personalidade jurídica de Direito Público, possui maior grau de administrativização e, por isso, incidência maior do regime de Direito Público do que uma sociedade de economia mista, por ter personalidade jurídica de Direito Privado.

É nesse cenário que emerge a discussão envolvendo a Empresa de Transporte e Trânsito de Belo Horizonte – BHTRANS. Com efeito, trata-se de sociedade de economia mista criada especificamente para as funções de fiscalização e poder de polícia de trânsito, inclusive com a possibilidade de aplicação de multas. Nesta estatal, 98% de suas ações são do Município de Belo Horizonte, 1% pertence à autarquia municipal SUDECAP e 1% pertence à sociedade de economia mista PRODABEL.

A discussão, que chegou ao Superior Tribunal de Justiça em 2009, por meio do Recurso Especial nº 817.534⁄MG, de Relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, foi no sentido de não ser permitido à referida estatal o exercício do poder de polícia, na medida em que seu regime de Direito Privado se tornava incompatível com a prerrogativa sancionatória atribuível à Administração Pública.

O entendimento fixado pelo STJ levou em consideração a doutrina dos ciclos do poder de polícia que determina que o exercício desse poder, pela Administração, divide-se em quatro fases ou ciclos, quais sejam:  a ordem, que é a previsão legal que permite o exercício do poder de polícia; o consentimento, que é a fase por meio da qual a Administração autoriza o exercício individual de direitos; a fiscalização, que é a análise do cumprimento das regras estabelecidas pelo ordenamento jurídico e, finalmente, a sanção, que ocorre nas hipóteses de descumprimento das regras estabelecidas no primeiro ciclo.

Assim, de acordo com a Corte Superior, apenas os atos relativos ao consentimento e à fiscalização poderiam ser conduzidos por entes da Administração Indireta com personalidade jurídica de Direito Privado. De outro lado, seriam indelegáveis os ciclos da ordem (relacionado à atividade legislativa) e da atividade sancionatória.

O STF reformou o acórdão do STJ e, por meio do Recurso Extraordinário nº RE 633782/MG, prevaleceu o voto do Relator, Ministro Luiz Fux, no sentido de que é constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de Direito Privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial.

O Relator destacou, portanto, que, dos ciclos de Poder de Polícia, o único que deve ser considerado indelegável é a atividade legislativa, ou seja, a denominada “ordem de polícia”.

Veja-se que a presente decisão não só representa uma mudança de entendimento em relação ao que vinha sendo propagado desde 2009, como, ainda, representa uma quebra de paradigma da própria Suprema Corte brasileira, que deixa finalmente para trás o posicionamento fixado na
ADI nº 1.717 no sentido de que apenas aspectos materiais do poder de polícia poderiam ser delegados a entes da Administração Indireta com personalidade jurídica de Direito Privado.

Ademais, a adoção pelo STF da vertente mais moderna, flexibilizada e pautada na juridicidade é de extrema relevância neste momento em que, principalmente após o Novo Marco Legal do Saneamento (Lei Federal nº 14.026/2020), diversas estatais prestadoras deste serviço estão iniciando seus processos de desestatização sendo fundamental, portanto, compreender os limites de atuação sancionatória dessas entidades na regulação dos serviços eventualmente concedidos.

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