Quando o Judiciário decide o preço da passagem: o risco do “Efeito Borboleta Orçamentário”

STJ reafirma a separação dos poderes e a deferência judicial à política de reajuste da tarifa de transporte definida pelo Município de Manaus.
pedro-lucena

Pedro Lucena

Advogado

Compartilhe este conteúdo

Síntese

Destacando a presunção de legitimidade dos atos administrativos, a separação dos poderes e o risco de prejuízo ao planejamento orçamentário municipal em outras áreas sociais, o Superior Tribunal de Justiça suspendeu os efeitos da decisão do Tribunal de Justiça do Amazonas que impedia a atualização da tarifa dos serviços públicos de transporte coletivo urbano na capital manauara.

Comentário

Edward Lorenz foi um importante meteorologista e matemático norte-americano, que, dentre outras contribuições científicas, ficou particularmente conhecido por popularizar o conceito do “Efeito Borboleta”.

Em termos resumidos, a ideia sugere que uma intervenção na condição inicial de um sistema complexo, mesmo que se trate de uma interferência mínima, pode gerar consequências significativas e imprevisíveis em sua dinâmica.

O raciocínio se aplica a diversas áreas do conhecimento humano – inclusive ao Direito e, de modo ainda mais específico, aos contratos de concessão relacionados à mobilidade urbana.

Prova disso é a conclusão extraída de um dos argumentos centrais utilizados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao afirmar, em recente decisão, que a intervenção do Poder Judiciário na política de reajuste tarifário de transportes tem potencial para impactar negativamente o orçamento público municipal.

Impacto esse que não estaria restrito às peculiaridades da prestação dos serviços de transporte coletivo urbano, mas, ao contrário: tem a capacidade de afetar amplamente diversos outros setores de serviços públicos essenciais à coletividade.

O contexto fático no qual se manifestou o STJ foi o seguinte: por decreto, em fevereiro de 2025, o Município de Manaus determinou a atualização do valor da tarifa do transporte coletivo urbano de passageiros.

Dentre outros fundamentos, a decisão do Executivo foi respaldada por um estudo técnico de natureza econômica, que apontou para a necessidade de atualização tarifária – ante uma defasagem financeira acumulada ao longo de quase dois anos.

O reajuste pretendido era de R$ 0,50: a tarifa passaria de R$ 4,50 para R$ 5,00.

O Ministério Público do Estado do Amazonas, por sua vez, ajuizou uma Ação Civil Pública com o objetivo de suspender o reajuste, obtendo, em primeira e segunda instâncias, liminar favorável à suspensão do reajuste.

Dentre os argumentos apresentados pela promotoria, dois foram especialmente reverberados:

  1. O primeiro, de cunho contratual, sustenta que o aumento seria indevido enquanto não houvesse a completa renovação da frota de transportes;

  2. O segundo, de natureza retórico-factual, alega que o reajuste colocaria Manaus entre as capitais com tarifas mais altas do país, impondo ônus excessivo à população de baixa renda – principal usuária do serviço.

Porém, os argumentos não foram suficientes para manter a liminar no STJ.

Em decisão monocrática, o ministro Herman Benjamin ressaltou que a suspensão dos efeitos de um ato judicial consistiria em medida excepcional, justificada, apenas, diante da demonstração de grave e iminente lesão ao bem jurídico tutelado. No caso, de acordo com o relator, a não atualização tarifária geraria um grave risco de prejuízo à agenda orçamentária (economia pública) municipal.

Sob a ótica dos dados apresentados pelo Município, o não reajuste de R$ 0,50 na tarifa do usuário representaria um acréscimo mensal de R$ 7.708.406,33 no valor do subsídio que o Executivo teria que destinar aos serviços, tendo em vista a manutenção do equilíbrio contratual.

Em um ano, o montante totalizaria dispêndio orçamentário de R$ 92.500.875,96.

Impedir a Administração municipal de dispor desses recursos e obrigá-la, de forma indireta, a custear o valor do reajuste, em última instância, equivaleria a usurpar a competência administrativa de gerir o orçamento público.

Tal circunstância, conforme pontuado na decisão, consiste em inequívoca afronta à determinação constitucional de separação dos poderes. Por isso o julgamento do STJ destaca a deferência que o Judiciário deve adotar em relação às decisões do Executivo, especialmente diante da presunção relativa de legalidade e legitimidade inerente às deliberações do gestor municipal.

Noutras palavras, juízes até podem intervir nas decisões da Administração Pública. Entretanto, essa intervenção deve ser excepcional, restrita ao exame da legalidade, sempre considerando as consequências práticas da decisão e sem se imiscuir no mérito administrativo.

No caso concreto, ao suspender o reajuste tarifário, verificou-se que o Poder Judiciário poderia desencadear um verdadeiro “Efeito Borboleta Orçamentário” nas contas públicas municipais, produzindo consequências significativas e imprevisíveis na dinâmica de outros serviços – a exemplo de saúde e educação.

Sob essa perspectiva, o STJ suspendeu os efeitos da liminar que impedia a atualização tarifária, garantindo a manutenção dos efeitos do decreto que estabeleceu o reajuste da tarifa do transporte coletivo urbano na capital amazonense.

Pelo menos nessa primeira “batida de asas”, a intervenção judicial foi mitigada, mantendo-se a previsibilidade da dinâmica orçamentária prevista pelo Município para o setor – e para outras áreas sociais que poderiam ser indiretamente afetadas.

Gostou do conteúdo?

Faça seu cadastro e receba novos artigos e vídeos sobre o tema
Recomendamos a leitura da nossa Política de Privacidade.