Introdução
No Brasil, onde o agronegócio responde por mais de 20% do PIB, uma nova realidade tem avançado nos tribunais: o uso crescente da recuperação judicial por produtores rurais. O fenômeno levanta dilemas sobre os limites da proteção jurídica diante da inadimplência no campo e provoca rearranjos sensíveis nas relações entre produtores, financiadores e fornecedores.
A recuperação judicial no campo
A Lei 11.101/2005, que regula a recuperação judicial, foi pensada originariamente para sociedades empresárias, deixando os produtores rurais em um vácuo legislativo. Esse ambiente começou a mudar após a guinada interpretativa do Superior Tribunal de Justiça, que, em 2020, reconheceu a possibilidade de um produtor rural pessoa física pleitear recuperação judicial, desde que comprovada a inscrição na Junta Comercial e exercício prévio da atividade rural há mais de 2 anos. A decisão adotada no REsp 1.800.032/MT representou um avanço para o setor rural.
Em 2022, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 1.145), o STJ consolidou o entendimento de que, ao produtor rural que exerça sua atividade de forma empresarial há mais de dois anos, é facultado requerer a recuperação judicial, desde que inscrito na Junta Comercial no momento em que formalizar o pedido, independentemente do tempo de registro anterior.
Esse movimento, somado à alteração na lei de recuperação judicial, em 2020, abriu espaço para avanços e controvérsias. Ao mesmo tempo em que se viu a oportunidade de soerguimento do agronegócio em crise, identificou-se o risco de desvirtuamento da lógica da recuperação, que poderia se transformar em estratégia de adiamento do cumprimento de obrigações contratuais, especialmente em contratos de crédito rural, cujo regime jurídico especial oferece garantias diferenciadas.
Desde então, os tribunais vêm reconhecendo pedidos de recuperação judicial por produtores rurais (tanto pessoas físicas quanto jurídicas) em volume crescente.
Dados da Serasa mostram que os pedidos de recuperação no agronegócio bateram recorde em 2024, com crescimento de 138% na comparação com o ano anterior. E o impulsionamento nos pedidos veio sobretudo de produtores rurais pessoa física, com alta aproximada de 350% no comparativo anual.
Portanto, o setor passou a utilizar o instrumento como escudo contra a execução de dívidas, em meio a incremento dos juros, oscilações cambiais, variações climáticas e ao encarecimento dos insumos.
Contudo, o cenário jurídico ainda é permeado por incertezas e limitações.
Discute-se se os produtos agrícolas (tal como os grãos) devem ser considerados bens de capital essencial para a atividade empresarial do produtor rural, e, portanto, imunes à apreensão durante o stay period. As decisões dos diversos tribunais são divergentes e muitas consideram os produtos como bens de capital essencial. Em 2022, o STJ adotou entendimento diverso (sem efeito vinculante), decidindo que produtos agrícolas, como soja e milho, não são bens de capital essenciais à atividade empresarial (EREsp nº 1991989/MA).
A solução da divergência é relevante, pois diversas operações são garantidas pela produção agrícola.
Quanto às limitações em si, a Lei nº 14.112/20, que modificou a legislação recuperacional, introduziu restrições aos créditos decorrentes da atividade agrícola aptos a serem renegociados durante o processo de recuperação. Significa dizer que nem todos os créditos ligados à atividade rural estão sujeitos à recuperação judicial (créditos rurais renegociados antes do pedido; dívidas dos últimos 3 anos, contraídas para aquisição de propriedade rural e as CPRs, por exemplo).
Além disso, outra ordem de limitações diz respeito à aplicação dos princípios do crédito rural, disciplinados por leis, como a nº 4.829/1965 e pelos normativos do Conselho Monetário Nacional, ao regime da recuperação judicial. As operações de crédito rural compreendidas no âmbito dos arts. 14 e 21 da Lei 4.829/1965 que tenham sido objeto de negociação entre o devedor e a instituição financeira antes do pedido não se submetem aos efeitos da recuperação judicial.
Com isso, passou-se a questionar a paridade de tratamento e o possível desequilíbrio entre credores.
Cooperativas de crédito, fundos de investimentos, e fornecedores de insumos veem a recuperação judicial como uma ruptura do pacto de confiança que sustenta o agronegócio. A insegurança jurídica também compromete os investimentos estrangeiros, a atuação marcante dos fundos de investimento (sobretudo os voltados ao agronegócio) e o mercado de antecipação de recebíveis, pilares financeiros da cadeia produtiva.
Diante disso, qualquer intervenção judicial nesse ambiente deve objetivar o equilíbrio entre o direito à reestruturação com a previsibilidade que sustenta o crédito no campo. Embora a recuperação judicial no agronegócio seja um instrumento legítimo, não raro é desvirtuada, sendo empregada como estratégia de blindagem.
Conclusão
A expansão da recuperação judicial no agronegócio brasileiro é sintoma de um setor em transformação, pressionado pelo incremento dos juros, fenômenos climáticos, volatilidade econômica e dependência de crédito. O desafio está em construir, no campo e nos tribunais, uma via de equilíbrio que proteja quem produz sem desestruturar quem financia.