Responsabilidade civil no transporte rodoviário de cargas

Como o estado de conservação das rodovias e atos de terceiros podem impactar a responsabilização dos agentes envolvidos no transporte de cargas

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O transporte rodoviário de cargas é atividade essencial à economia nacional, sendo responsável pela maior parte da circulação de bens no território brasileiro. Essa relevância, contudo, vem acompanhada de riscos significativos, que frequentemente culminam em perdas, extravios e danos aos bens e às mercadorias. É nesse cenário que a responsabilidade civil das transportadoras se projeta como instrumento de proteção ao contratante e de equilíbrio das relações jurídicas que envolvem o setor.

Nos termos do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, o transportador responde objetivamente pelos danos causados ao cliente, sem necessidade de comprovação de culpa. O Código Civil, em seus artigos 749 e 750, também impõe ao transportador o dever de guarda, conservação e entrega da carga no destino, tal como recebida. Assim, eventual extravio, dano ou perda durante o trajeto gera, em regra, o dever de indenizar, o que reforça a posição da transportadora como a primeira garantidora da integridade da mercadoria.

A objetividade da responsabilidade não significa, contudo, que a transportadora deva suportar sozinha todos os encargos indenizatórios. Em determinadas situações, abre-se espaço para o exercício do direito de regresso contra terceiros que concorreram para o resultado lesivo. É o que ocorre quando o extravio decorre da má conservação da via, seja por buracos, má sinalização e quedas de barreiras, ou mesmo pela presença de animais ou objetos sobre a pista.

Nessas hipóteses, se a rodovia estiver sob concessão, a concessionária responde objetivamente, em razão do dever legal e contratual de assegurar a manutenção e a segurança do trecho. Se a rodovia permanecer sob gestão direta do poder público, aplica-se a responsabilidade objetiva do Estado, prevista no artigo 37, §6º, da Constituição Federal.

Esse regime revela um aspecto relevante: a concorrência de responsabilidades. A transportadora responde de forma imediata perante o cliente, assegurando a reparação célere, mas pode buscar ressarcimento regressivo contra a concessionária ou o ente estatal. Tal solução visa prestigiar a proteção do contratante, que não precisa investigar quem foi o efetivo causador do dano, ao mesmo tempo em que distribui equitativamente os encargos entre os responsáveis. A jurisprudência tem reconhecido que essa dinâmica contribui para um sistema mais justo, em que cada agente assume a parcela de risco compatível com sua esfera de atuação.

Mais delicada é a hipótese em que o extravio decorre de atos criminosos, como furtos, roubos ou assaltos em rodovias. O Superior Tribunal de Justiça tem reiteradamente decidido que tais ocorrências não afastam a responsabilidade da transportadora, por entender que o roubo, longe de configurar fortuito externo, integra o risco próprio da atividade de transporte de cargas, sobretudo em um país em que a criminalidade rodoviária é frequente. Dessa forma, ainda que tenha havido violência ou grave ameaça, subsiste o dever de indenizar o contratante.

Por outro lado, a mesma jurisprudência afasta a possibilidade de regresso contra concessionárias ou contra o Estado. Nessas hipóteses, o ato criminoso é, via de regra, qualificado como fato de terceiro, imprevisível e inevitável, que escapa à esfera de previsibilidade tanto da concessionária quanto do poder público. O Estado não responde de forma objetiva por todo e qualquer crime praticado em rodovias, mas apenas em situações excepcionais em que reste demonstrada omissão específica e concreta no dever de policiamento. Na prática, essa configuração restringe a transportadora à contratação de seguros, que se tornam instrumentos fundamentais para mitigar os prejuízos e assegurar a continuidade da atividade.

Essa conjuntura demonstra que a transportadora ocupa posição peculiar: é responsável direta perante o cliente em praticamente todas as hipóteses de extravio, mas só em parte delas consegue redistribuir o ônus do ressarcimento. Enquanto nos casos de falha estrutural da rodovia há espaço para ações regressivas contra concessionárias ou entes públicos, nas hipóteses de assalto ou furto a responsabilidade permanece concentrada sobre o transportador, salvo quando houver cobertura securitária.

A análise desse regime jurídico evidencia uma tensão permanente entre a proteção do credor da prestação, a repartição equitativa dos riscos e a definição dos limites da responsabilidade civil no transporte. Em última instância, trata-se de conciliar a segurança jurídica do contratante com a razoável distribuição de encargos entre transportadoras, concessionárias e Estado, de modo a evitar tanto a desproteção do contratante quanto o ônus excessivo sobre um único agente econômico.

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