A apropriação indébita tributária e o entendimento do STJ e do STF

Recolher o ICMS ou não recolher? Qual a punição?
Henrique-Dumsch-Plocharski

Henrique Plocharski

Advogado da área penal empresarial

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O ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF) vem sendo criticado há certo tempo. Compreende-se que o poder judiciário não pode suprir eventual omissão do poder legislativo ou, em outras palavras, os ministros não podem, em hipótese de omissão ou inércia do congresso, fazer leis como se fossem legisladores.

Apesar disso, em 2019, ao julgar o Recurso Ordinário em Habeas Corpus (RHC) n.º 163334, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990”. Ou seja, o não recolhimento do ICMS passou a configurar o crime de apropriação indébita tributária, sujeitando o autor a sanções de detenção de 6 meses a 2 anos, em razão de interpretação do Tribunal.

A corrente majoritária no Supremo foi formada seguindo o entendimento do ministro Roberto Barroso, o qual, há certo tempo, vem reconhecendo o fracasso do cárcere, conforme votação unanime na ADPF 347, de relatoria do ministro, que reconheceu que “No sistema prisional brasileiro, há uma situação de violação em massa de direitos fundamentais dos presos, a exemplo dos direitos à integridade física, alimentação, higiene, saúde, estudo e trabalho. Esse cenário está em desacordo com as normas previstas na Constituição Federal de 1988 (art. 3º, III, e art. 5º, incs. XLVII, XLVIII e XLIX), nos tratados internacionais de direitos humanos de que o Brasil é parte e nas demais leis aplicáveis ao tema (entre elas, a Lei de Execução Penal).

Absoluto contrassenso.

Entretanto, um ponto positivo é que em julgamentos posteriores (HC 569856/SC – com julgamento em 10/2022), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) compreendeu que não basta o mero inadimplemento da obrigação tributária referente ao ICMS para configuração do tipo penal descrito no artigo 2º, inciso II, da Lei n.º 8.137/90, sendo imprescindível, para tanto, a contumácia e o dolo específico. Isto é, o não recolhimento precisa ser habitual, o que demonstraria a inequívoca vontade de se apropriar dos valores, ao contrário do que aconteceria em caso que o inadimplemento fosse aleatório, ou seja, em meses não subsequentes.

Destaca-se do voto do ministro Sebastião Reis Junior o seguinte trecho: “Repito, no caso dos autos, o não pagamento do tributo por seis meses aleatórios não é circunstância suficiente para demonstrar a contumácia nem o dolo de apropriação. Ou seja, não se identifica, em tais condutas, haver sido a sonegação fiscal o recurso usado pelo empresário para financiar a continuidade da atividade em benefício próprio, em detrimento da arrecadação tributária.”

Contudo, o Superior Tribunal de Justiça editou novo enunciado de súmula, em 2023, com o seguinte teor: “Súmula 658 – O crime de apropriação indébita tributária pode ocorrer tanto em operações próprias como em razão de substituição tributária.”

Padecem os empresários e comerciantes, portanto, dessas vicissitudes do nosso sistema judiciário atual, as quais geram, inevitavelmente, grande insegurança jurídica, sob a justificativa de tutelar o interesse comunitário (ou estatal) do adimplemento da obrigação tributária.

Em relação à Súmula 658, é necessário refletir que, no caso das operações próprias, não há a cobrança ou desconto de terceiro referente ao tributo, que quando deixa de ser repassado ao Estado poderia configurar hipótese de apropriação. Na operação própria, a relação é direta entre o contribuinte e o Estado, logo, constitui exclusivamente obrigação tributária do contribuinte que, muitas vezes, não é adimplida por questões de dificuldades financeiras do devedor. Logo, a solução da questão perpassa pela execução fiscal, medida apta para cobrança do tributo, e não pelo Direito Penal, salvo possível caso em que se imagine a existência de fraude, o que poderia alterar aspectos relevantes à hipótese desenvolvida.

Não é por acaso que o princípio da intervenção mínima, como orientador e limitador do direito de punir estatal, tem extrema relevância e deve ser recordado a todo momento, buscando tornar o ordenamento jurídico seguro e consistente. O Estado não deve ter o privilégio de utilizar a ameaça da constrição à liberdade como meio de cobrança, haja vista que ele dispõe de mecanismos e ferramentas próprios e cada vez mais sofisticados para exigir o tributo omitido.

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