A lei da liberdade econômica e as alterações nas regras da desconsideração da personalidade jurídica

Entre avanços e retrocessos: uma análise das modificações no regramento da desconsideração da personalidade jurídica pela Lei de Liberdade Econômica.
Beatriz-Mello

Beatriz de Mello

Advogada egressa

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Como regra, a pessoa jurídica não se confunde com a pessoa de seus sócios. As sociedades só respondem pelos débitos dentro dos limites do seu capital social. Quanto ao patrimônio individual das pessoas naturais, surgem duas hipóteses, a depender do tipo societário. Na primeira hipótese, o patrimônio fica totalmente a salvo, e não pode ser executado. Na segunda, a responsabilidade é subsidiária: os bens particulares só podem ser executados após o exaurimento do patrimônio societário.

A possibilidade de excluir a responsabilidade dos sócios por dívidas da pessoa jurídica acabou por ensejar uma série de fraudes. Pessoas aproveitavam-se dessa possibilidade para se enriquecer em detrimento de terceiros, e utilizavam a pessoa jurídica como uma “capa” para proteger seus interesses. Em razão desse contexto consagrou-se no Código Civil a “desconsideração da personalidade jurídica”. Assim, permite-se que o juiz desconsidere a regra de personificação da sociedade, para atingir os bens dos sócios.

A redação original do Código Civil previa como requisito a constatação de abuso da personalidade jurídica, seja pelo desvio de finalidade, seja pela confusão patrimonial (bens da sociedade registrados em nome do sócio, p. ex.). Com a promulgação da Lei de Liberdade Econômica, em 2019, ocorreram alterações no regramento da desconsideração da personalidade jurídica.

Inicialmente, estabeleceu-se que serão atingidos pela desconsideração apenas os bens dos administradores ou sócios que foram beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. Trata-se de um avanço legislativo, na medida em que impede a utilização deste instituto de forma desproporcional para atingir pessoas naturais que não tenham praticado qualquer ato ilícito ou abusivo.

Em seguida, acresceram-se conceituações para o desvio de finalidade e para a confusão patrimonial. Determinou-se que o desvio de finalidade resta caracterizado quando se utiliza a pessoa jurídica para lesar credores ou praticar atos ilícitos. Quanto à confusão patrimonial, estabeleceram-se parâmetros objetivos para sua configuração: a) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou administrador e vice-versa; b) a transferência de ativos ou passivos sem efetivas contraprestações; e c) outros autos de descumprimento da autonomia patrimonial.

Embora tais disposições sejam importantes para garantir maior segurança às relações patrimoniais, a previsão de que somente o cumprimento repetitivo pela sociedade ou pelos sócios das obrigações uns dos outros caracterizaria a confusão patrimonial merece críticas. Isso porque um único ato já é suficiente para que ocorra um esvaziamento do patrimônio da pessoa jurídica com o intuito de prejudicar credores. Tal ato, todavia, pela nova redação do Código Civil, não é apto a autorizar a desconsideração.

Também restou positivado que apenas a existência de grupo econômico, sem os requisitos destacados, não é suficiente para desconsiderar a personalidade jurídica. Por fim, estabeleceu-se que não caracteriza desvio de finalidade a expansão ou alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. Essa previsão também tem pontadas de retrocesso. Imagine-se, por exemplo, uma fundação que altera sua finalidade inicial, desviando-se dos fins nobres taxativamente previstos no Código Civil. Essa alteração, embora muito provavelmente caracterize um desvio de finalidade, não será mais suficiente, ao menos pela interpretação literal da lei, para possibilitar a desconsideração.

Diante do que se expôs, pode-se perceber que as alterações promovidas pela Lei de Liberdade Econômica configuraram, de um lado, um avanço, pois a) passou a impedir que os bens de pessoas que não foram beneficiadas de qualquer forma pelo abuso da personalidade sejam atingidos pela desconsideração; e b) estabeleceu critérios objetivos para configuração dos requisitos necessários para autorizar a desconsideração, privilegiando a autonomia patrimonial das empresas e a segurança das relações.

Nada obstante, a Lei também previu disposições que caracterizam um retrocesso, haja vista que a) passou a impedir a desconsideração diante da prática de apenas um único ato de cumprimento de obrigação da sociedade pelos sócios ou vice-versa, ainda que esvazie por completo o patrimônio da pessoa jurídica; e b) estabeleceu que a alteração da finalidade original da pessoa jurídica não é suficiente para caracterizar o desvio de finalidade, embora muito provavelmente seja este o propósito.

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