A vedação ao abuso ao poder regulamentar como norma orientadora da atuação estatal

Novos contornos à atuação estatal na regulação econômica.
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Larissa Casares

Advogada da área de infraestrutura e regulatório

Regina-Costa-Rillo

Regina Rillo

Advogada egressa

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A Constituição Federal elegeu a livre iniciativa como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, alçada ao mesmo patamar da soberania, da cidadania e da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e do pluralismo político, logo no primeiro artigo do texto constitucional.

Enquanto fundamento do Estado Democrático de Direito brasileiro, a livre iniciativa constitui uma das bases sobre as quais se assenta a República nacional (Silva, 2009, p. 35), e é um dos valores da ordem econômica instituída pela Constituição de 1988 (art. 170).

Por evidente, embora seja valor elementar ao Estado Liberal, a livre inciativa deve se conformar aos demais valores e princípios resguardados pela Constituição. Encontra limites, por exemplo, na função social da propriedade e na valorização do trabalho, bem assim nos objetivos fundamentais do Estado brasileiro, que visam uma sociedade livre, justa e solidária, com redução da pobreza, marginalização e desigualdades sociais e regionais (art. 3º).

Mantida a harmonia com os demais valores, a livre inciativa representa uma das vertentes dos princípios da liberdade e da propriedade (art. 5º). Assegura a todos “o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos”, observadas as disposições legais (art. 170).

Foi precisamente em vista de todo o resguardo dado pela Constituição à livre inciativa, que a Lei 13.874/2019 dedicou-se a evitar o abuso do poder regulatório do Estado, em seu artigo 4º. É que o Estado, enquanto agente normativo e regulador, intervém diretamente na atividade econômica.

Em termos simples, a regulação consiste na produção normativo-regulamentar para a definição de regras voltadas a determinada atividade.

A regulação estatal possui sentido e alcance diverso, a depender de se tratar de atividade econômica ou serviço público. No caso da prestação de serviço público, por se tratar de atividade de titularidade do Estado, normalmente exercida em regime de monopólio natural, pressupõe um controle estatal mais intenso. Isso porque, na ausência de incentivos concorrenciais, será a regulação estatal o instrumento apto a estimular a eficiência e a qualidade na prestação dos serviços, bem assim no controle dos preços praticados, evitando-se práticas abusivas propícias em situações de falhas de mercado.

Já no caso da atividade econômica desempenhada sobre a livre iniciativa, a regulação estatal, ao lado do incentivo e do planejamento, busca garantir seu desenvolvimento à normalidade (Silva, 2009, p. 721), precipuamente por meio da garantia à livre concorrência e do abuso do poder econômico.

Quando excessiva, a regulação passa a ser sinônimo de burocracia e pode ter o efeito de gerar, ironicamente, um ambiente de alta insegurança jurídica para o cidadão e o meio empresarial. É justamente esse o cenário nacional.

Estudo formulado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação – IBPT chegou à conclusão de que o Brasil possui “uma das legislações mais complexas, confusa e de difícil interpretação do mundo”[1]. Segundo o levantamento, entre 1998 e 2017, ano em que a pesquisa foi concluída, foram editadas 769 (setecentos e sessenta e nove) normas por dia útil, entre leis, medidas provisórias, instruções normativas, emendas constitucionais, decretos, portarias, instruções normativas, atos declaratórios, entre outras.

Temas como saúde, educação, trabalho, salário e tributação, que possuem impacto direto na atividade econômica, apareceram em 45% de todas as normas, ao passo que somente 4,13% das regras editadas não sofreram nenhuma mudança, o que demanda uma constante adaptação às alterações.

É contra essa realidade que se propôs a Lei 13.874/2019, buscando por um limite ao poder regulamentador da Administração e uma atuação responsável. Nesse sentido, a lei prestigia a liberdade do exercício das atividades econômicas num ambiente de livre concorrência; e, para os casos que exigem regulação, traz orientações voltadas a evitar que a atuação estatal se dê sem critérios objetivos e fundamentados. Tudo isso para gerar um ambiente de segurança jurídica.

Para isso, o art. 4º institui como dever da Administração evitar o abuso do poder regulatório estatal, exceto se para estrito cumprimento de previsão explícita em lei. Busca-se impor limites à regulação estatal, de modo a que sejam mitigadas possíveis produções normativas que resultem em prejuízo à livre concorrência e normal desenvolvimento da livre inciativa.

São consideradas indevidas, por exemplo, regulamentação que crie reserva de mercado, pelo favorecimento de determinado grupo por meio de regulação, em prejuízo aos demais concorrentes; a utilização da regulação como forma de instituir impedimento a novos competidores – nacionais ou estrangeiros; e o aumento dos custos de transação sem demonstração de benefícios; bem assim a instituição de limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas.

Numa realidade de fintechs e uber, chama a atenção a previsão do inciso IV do artigo 4º, que veda enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, exceto em se tratando de situações consideradas como de alto risco. Outro ponto interessante, é a previsão do inciso VI do mesmo artigo, que combate a criação de demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros.

São previsões que parecem elementares num cenário de regular desenvolvimento de mercado, com ampla competitividade. Nada obstante, num país de hipernomia, foi preciso uma lei mais, para garantir que o “exercício regulador pelo Estado, conforme determina o art. 174 da Constituição Federal, não atuará em sentido contrário ao da liberdade econômica”, conforme a exposição de motivos da Medida Provisória que precedeu a Lei.

Os incisos do art. 4º impõem uma análise prévia sobre os as consequências práticas do ato normativo aos agentes econômicos privados. Poder-se-ia dizer que se trata de uma outra faceta do consequencialismo jurídico, que se buscou incluir no âmbito decisório do Estado, por meio do artigo 20 do Decreto-Lei nº 4.657/1942 (a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB).

A Lei federal nº 13.874/2019 chega em boa hora trazendo consigo o estímulo ao equilíbrio natural das relações econômicas, ao incluir a vedação ao abuso regulatório como norte orientador da atuação estatal no exercício da competência regulamentar.

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