Síntese
A discussão acerca da aplicabilidade do CDC em contratos de financiamento para fomento de atividade agrícola já vem de longa data sendo tratada pelos Tribunais. A jurisprudência vinha sendo definida em sentido negativo para os produtores rurais. Entretanto, o TJSP, em recente decisão, modificou seu entendimento e aplicou o Código Consumerista em caso envolvendo contrato de financiamento firmado entre produtor rural e uma cooperativa de crédito.
Comentário
Em julgamento realizado em 15 de fevereiro de 2019, a 14ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo entendeu ser possível a aplicação do Código de Defesa do Consumidor a uma relação de crédito travada entre pequeno produtor rural e cooperativa de crédito integrante do sistema financeiro nacional. A decisão, proferida nos autos da apelação n° 1000508-76.2017.8.26.0698, considerou que o fato de o produto do financiamento ser aplicado para fomento da atividade agrícola não afasta a incidência do CDC e que a cooperativa de crédito agrícola se equipara a instituição financeira, quando devidamente registrada no sistema financeiro nacional.
O ponto que surpreende na decisão é o fato de que tanto a jurisprudência do TJSP quanto a jurisprudência do STJ se firmaram no sentido da inaplicabilidade da legislação consumerista em contratos de crédito para fomento da atividade agrícola. Até então, entendia-se, predominantemente, que a utilização do financiamento para incremento da atividade profissional do agricultor impedia o reconhecimento do produtor rural como destinatário final do produto creditício e, por consequência, obstaria seu enquadramento no conceito de consumidor.
Muito embora a decisão do TJSP expresse um entendimento minoritário e esteja calcada em precedente antigo do STJ, demonstra que a discussão a respeito do enquadramento do produtor rural como consumidor não foi completamente abandonada. Esse debate tem profundos impactos nas relações de crédito agrícola, especialmente no que se refere à possibilidade de ajuizamento de ações revisionais.
É evidente, não só no caso de pequenos produtores rurais, que há uma disparidade técnica entre as instituições financeiras (ainda que cooperativas de crédito) e o produtor rural. Nesse sentido, o enquadramento do produtor rural à condição de consumidor em contratos de crédito é um mecanismo importante para suprir essa hipossuficiência técnica e equalizar o ambiente da discussão judicial (com a concessão da inversão do ônus da prova, por exemplo). Notadamente, influi nas chances de êxito nas ações judiciais envolvendo contratos de financiamento.
A jurisprudência majoritária, entretanto, considera que houve um significativo incremento da atividade rural nas últimas décadas. A min. Nancy Andrighi, por exemplo, já há tempos defende que o produtor rural de hoje não é o rurícola de pés descalços e sem qualquer acesso a informação (REsp 803481/GO). E, de fato, este avanço também está refletido no uso de contratos creditícios complexos, como a compra e venda de safra futura a preço certo, para fomentar a atividade agrícola de pequenos e grandes produtores.
O aumento da complexidade das atividades rurais vem acompanhado de um movimento natural do mercado e da jurisprudência em exigir um aumento do profissionalismo no agronegócio, inclusive no que se refere ao consumo de crédito. O entendimento do produtor rural como um fornecedor de produtos no mercado como qualquer outra empresa – e, por consequência, o afastamento da sua condição de destinatário final do crédito utilizado para fomento da sua atividade – é apenas expressão dessa exigência.
Exatamente por isso, o entendimento expresso na decisão do TJSP não é suficiente para eximir o produtor rural da obrigação de ser diligente em suas contratações. Isto porque se de um lado ainda é minoritário o entendimento pelo enquadramento do produtor rural na condição de consumidor, de outro o reconhecimento jurisprudencial da aplicabilidade do CDC não impede uma reação por parte das instituições financeiras, seja pelo encarecimento do crédito rural, seja pelo aumento de entraves administrativos para a concessão de crédito aos mutuários com ações revisionais em andamento.