Como a Reforma Tributária pode representar a supressão de conquistas dos contribuintes?

Novas regras de ITBI e ITCMD contrariam o conteúdo jurídico de decisões dos Tribunais Superiores.
Andressa-Akemi-Saizaki

Andressa Saizaki

Head da área de direito tributário

Compartilhe este conteúdo

O cidadão brasileiro tem assistido nos últimos meses os passos apertados do Governo e do Congresso Nacional rumo à aprovação dos Projetos de Lei da Reforma Tributária do Consumo. Em linhas bastante gerais, a pretensão declarada da Reforma é a simplificação do complexo sistema tributário brasileiro, com a progressiva supressão dos cinco mais controvertidos tributos em vigor (ICMS, PIS, COFINS, ISS e IPI) e sua substituição por três novos tributos: IBS, CBS e IS.

Em meio aos relevantes temas trazidos pelos Projetos de Lei da Reforma, foram inseridas alterações pontuais na legislação de dois tributos não diretamente relacionados ao consumo, o Imposto causa mortis e doações (ITCMD) e Imposto Sobre Transmissão Onerosa de Bens Imóveis (ITBI).  Sobre tais alterações, estão em grande destaque o estabelecimento da progressividade, a criação de novos fatos geradores e o aumento da alíquota do ITCMD, que vai impactar nos inventários e doações, bem como a possibilidade de tributação de heranças do exterior e operações societárias.

Todavia, um olhar mais atento rapidamente identifica que o PLP introduz mudanças na legislação de regência destes tributos, que terão por efeito a supressão de conquistas dos contribuintes no Judiciário, por meio de teses firmadas em recursos repetitivos.

Com relação ao ITCMD, a Tese firmada em julgamento do tema 1048 pelo STJ, em maio de 2021, definiu que, no imposto referente à doação não oportunamente declarada pelo contribuinte ao fisco estadual, a contagem do prazo decadencial teria início no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, observado o fato gerador, em conformidade com a regra vigente no Código Tributário Nacional. O julgamento trouxe segurança ao Contribuinte quando estabeleceu limites temporais para a possibilidade de o Fisco Estadual identificar, por iniciativa própria, fatos geradores do tributo.

Em sentido diverso, o PLP 108/2024 estabeleceu como momento da ocorrência do fato gerador a data do ato ou negócio jurídico, nos casos em que não houver formalização. O texto-base indicou que o prazo de decadência, nestes casos, será contado a partir da data do conhecimento do ato ou negócio jurídico pela administração tributária estadual ou distrital.

Na prática, esta mudança de critério de contagem pode implicar na impossibilidade de decadência do direito do Fisco Estadual “descobrir” e lançar o imposto sobre operações sujeitas ao ITCMD.

Outra alteração do texto-base que conflita com o conteúdo de julgados proferidos em Recursos Repetitivos diz respeito ao momento da ocorrência do fato gerador do ITBI.

O PLP 108/2024 acrescentou o artigo 38-A ao Código Tributário Nacional, para estabelecer como elemento temporal do fato gerador do ITBI o “momento da celebração do ato ou título translativo oneroso do bem imóvel”.

O dispositivo vai de encontro ao conteúdo do Tema 1.124 do STF, quando firmou a seguinte Tese “O fato gerador do imposto sobre transmissão inter vivos de bens imóveis (ITBI) somente ocorre com a efetiva transferência da propriedade imobiliária, que se dá mediante o registro”.

A mudança introduzida pelo projeto de lei pode conferir legitimidade à prática dos Municípios e órgãos registrais imobiliários de exigir o pagamento do ITBI antes do ato de averbação da transmissão, com a mera assinatura de escritura, por exemplo. Este tipo de operação costumava gerar grandes discussões entre usuários dos serviços registrais e Prefeituras e foi solucionado pela resolução do Tema 1.124. A Reforma viabiliza o restabelecimento desta prática, bastante questionável do ponto de vista jurídico.

Ainda com relação ao ITBI, outra alteração introduzida com a Reforma pode ter repercussão conflitante com o conteúdo de uma conquista dos Contribuintes no STJ. Trata-se da presunção de legitimidade e veracidade do valor adotado nas transações declaradas pelos contribuintes. O PLP 108/2024 acrescenta artigo 38-A ao Código Tributário Nacional, estabelecendo que se considera valor venal, pra fins de ITBI, o valor de referência ou o valor da transmissão, o que for maior, do bem imóvel ou dos direitos reais sobre bem imóvel. A nova disciplina determina que o valor de referência será estabelecido por meio de metodologia específica para estimar o valor de mercado dos bens imóveis, nos termos de legislação municipal ou distrital, e será fixado anualmente nos termos da legislação municipal ou distrital.

Quer dizer, com esta modificação, deixa de ter lugar o conteúdo do Tema 1113, que definiu que o valor da transação declarado pelo contribuinte goza da presunção de que é condizente com o valor de mercado, somente ilidível pelo Fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio. No julgamento deste tema, o STJ definiu que os Municípios não podem arbitrar previamente a base de cálculo do ITBI com respaldo em valores de referência por si estabelecidos unilateralmente. O PLP traz entendimento dando legitimidade à conhecida Pauta Fiscal e, uma vez mais, suprime um entendimento favorável aos contribuintes.

Muito ainda há que ser debatido nos passos seguintes da aprovação da Reforma Tributária. Entre os pontos de atenção, a invalidação de entendimentos historicamente firmados nos Tribunais Superiores, em regime de recursos repetitivos, em favor dos contribuintes, deve ser considerada com toda cautela em prol da manutenção da segurança jurídica.

Gostou do conteúdo?

Faça seu cadastro e receba novos artigos e vídeos sobre o tema
Recomendamos a leitura da nossa Política de Privacidade.