Contratos gratuitos na Administração Pública

A promoção do voluntariado no âmbito da Administração Pública deve ser regulada para incorporar força de trabalho especial sem incremento de despesa.
Camila-Modesto

Camila Modesto

Advogada egressa

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O tema dos contratos gratuitos no serviço público vem sendo negligenciado pelo Direito Administrativo brasileiro. Não se trata da concessão comum, amplamente estudada, que a lei considera contrato sem remuneração, mas que possui caráter econômico viabilizado pela cobrança de tarifa dos usuários e receitas alternativas. Os contratos gratuitos aludidos são diferentes, a exemplo dos contratos de atuação profissional sem remuneração (voluntariado) e da oferta, pelos privados, de bens e serviços sem vínculo direto com qualquer benefício individual ou contrapartida.

Em períodos de grave crise financeira, contratos gratuitos ganham importância, pois permitem a entrega de bens e serviços ao cidadão sem acréscimo da despesa pública. O campo de pesquisa sobre a matéria é vasto, mas este texto volta-se para pequena parte desse quadro: o voluntariado e seu incentivo para a prestação de bens e serviços em entidades públicas, via contratação pública.

A Lei n° 9.608/1998, ou Lei do Voluntariado, estabelece a definição de serviço voluntário como “a atividade não remunerada prestada por pessoa física a entidade pública de qualquer natureza ou a instituição privada de fins não lucrativos que tenha objetivos cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência à pessoa”. Embora não remunerados, os serviços prestados pelos voluntários constituem vínculo jurídico contratual que a lei deve incentivar, especialmente quando o benefício final for a realização de serviços em entidades públicas.

Atualmente, o voluntariado é fortemente promovido no âmbito das instituições privadas. Organizações não Governamentais – ONGs e grandes empresas proporcionam desde oportunidades de “estágio voluntário” até eventos de proporções internacionais convocando voluntários para sua organização. Na Copa do Mundo da FIFA de 2014, realizada no Brasil, em apenas 15 dias mais de 100 mil pessoas se inscreveram para o programa de voluntariado do evento. Para os Jogos Olímpicos de 2016, o número de inscritos registrou igualmente, a quantidade de 100 mil pessoas, das quais 70 mil foram contratadas.

No entanto, ao mesmo tempo em que há incentivo e contratação crescente de voluntários no âmbito privado, o voluntariado na área pública continua desestruturado. Por mais que a possibilidade para esse tipo de serviço esteja prevista em lei, a legislação é pouco específica e raramente o tema é objeto de políticas de incentivo operacionais.

Recentemente, houve novas tentativas do Governo Federal em estimular a participação cidadã em ações dessa natureza, tanto com a instituição do Programa Nacional de Voluntariado, promulgado pelo Decreto n° 9.149/2017, como por meio do lançamento da plataforma digital Viva Voluntário no final de 2018. A plataforma foi desenvolvida em parceria com o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (Pnud) e segue estilo similar à ferramenta de “online volunteering” da ONU. Os serviços disponibilizados, porém, são, majoritariamente, beneficentes, pois o sistema não contempla um rol de atividades que possam ser realizadas em entidades ou órgãos públicos, nem sequer a possibilidade de cadastramento de ações entre as instituições disponíveis.

Esse desinteresse do Poder Público subaproveita o potencial da plataforma governamental para suprir necessidades administrativas. Perde-se, assim, boa oportunidade de convocar pessoas que têm interesse em contribuir com a sociedade para auxiliar na construção de condições favoráveis ao cumprimento dos compromissos estatais. O voluntário não se enquadra na visão impessoal e mecânica do trabalho encontrada nas relações salariais, visto que sua motivação transcende à satisfação monetária. Ele doa seu tempo e força de trabalho por vontade própria, por se entender como cidadão de direitos e deveres. Para o jovem, o voluntariado oferece a oportunidade de inscrever em seu percurso profissional a experiência de um primeiro trabalho efetivo e não apenas um registro acadêmico. Um autêntico exemplo de “win-win”.

Tal casamento de interesses é aproveitado em diversos países, como nos Estados Unidos, por exemplo, onde é possível se inscrever para voluntariar na Defesa Civil, no Departamento de Combate às Drogas, no Ministério da Justiça, entre outros órgãos públicos, por meio da plataforma “Usajobs”. Na Alemanha, até 2011, era possível optar pela prestação de serviço comunitário (Zivildienst) ao invés da prestação do serviço militar obrigatório (Wehrdienst). Atualmente, não há naquele país obrigação de nenhum tipo de serviço, mas há grande incentivo do governo para que as pessoas participem do serviço voluntário federal (Bundesfreiwilligendienstes).

Se essa força de trabalho converge com a ação administrativa na busca pelo interesse público, parece incoerente deixar de aproveitar o seu potencial em período de escassez de recursos. Daí a importância de incentivar o engajamento social e a participação cidadã, seja por meio da institucionalização de formas variadas de contratação de voluntários, inclusive como atividade alternativa ao serviço militar obrigatório, da focalização de projetos específicos ao invés de convocatórias gerais, da estruturação de serviços de apoio e acompanhamento e previsão de programas de curta duração no período de férias universitárias. Os voluntários compõem uma força de trabalho criativa e solidária que pode auxiliar na melhoria da qualidade dos serviços destinados à população, sem maiores despesas ao Poder Público e com capacidade de fornecer aos mais jovens as primeiras experiências de trabalho participativo.

Entretanto, há que se ressaltar que o incentivo ao voluntariado em instituições públicas deve ser cauteloso e crítico para evitar que haja abuso do instituto. É o caso do falso voluntariado, no qual se distorce o significado de trabalho sem fins lucrativos, através da previsão de elevadas indenizações ou bonificações que acabam por transformar o suposto voluntariado em mais uma forma de emprego que contorna a exigência de concurso público. Os benefícios desse tipo de contratação no âmbito da Administração Pública, assim como os perigos de uma disciplina genérica e pouco crítica da matéria, devem receber o interesse dos estudiosos do Direito Público.

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