Desjudicialização: a gestão estratégica do contencioso

Compreenda o círculo virtuoso por trás da gestão estratégica do contencioso – litigar melhor para litigar menos.
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Silvio Guidi

Advogado egresso

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Houve um tempo, e não faz assim tanto tempo, que receber citação de um processo judicial era sinônimo de desespero. A notícia se espalhava rápido pela empresa, que iniciava uma sindicância interna na busca por responsáveis. O receio de falar com imprensa sobre o assunto e a possibilidade de repercussão da notícia na sociedade colocava os gestores em um alto estado de atenção. Mesmo que não houvesse atuação preventiva para evitar ações judiciais, as empresas sempre recebiam com surpresa a notícia de um novo processo.

Hoje em dia, tudo é muito diferente. “Sofrer” um processo judicial já não significa mais sofrimento algum. Está na conta.

Todos sabem porque ocorreu esse fenômeno da judicialização das relações. O que parece que poucos compreenderam é que esse fenômeno é extremamente nocivo e não interessa a ninguém.

Essa falta de compreensão criou um círculo vicioso que afeta gravemente a sociedade. Esse efeito negativo foi precificado recentemente, como se viu em matéria do Estadão (02/12/2018), a qual revelou que o “desembolso com Judiciário chega a 2% do PIB”. Ou seja, aproximadamente 13 bilhões de reais. Para se ter uma ideia, revela a matéria, isso é quatro vezes mais do que o dos países que integram a OCDE.

Mas o círculo vicioso que afeta nossa sociedade não cuida apenas de contaminar as contas públicas (embora isso já fosse o bastante para justificar uma contracorrente). As relações privadas são fortemente atingidas pelo custo da judicialização.

Explico:

Companhias, Brasil afora, não têm políticas de prevenção de riscos jurídicos (compreenda risco jurídico como a possibilidade do surgimento de uma ação judicial, que pode ser agravado, na hipótese de sobrevir condenação). Trabalha-se com uma espécie de conta de chegada. Tenta-se estimar ao máximo quanto, naquele ano, será gasto com a rubrica de despesa “judicial” (e nela podem/devem estar inclusos: custas judiciais, honorários advocatícios e condenações). Sendo um elemento de despesa, passa a compor o orçamento. A partir desse momento, a missão não é vencer ou perder ações judiciais. Basta que se atinja a meta orçamentária, casando a previsão (chamada de contingência) com o resultado, e o sucesso está garantido.

Mas há um problema nessa dinâmica, que é a receita para pagar essa conta. Afinal, risco jurídico não é imposto, não é insumo, tampouco um custo necessário à produção de produtos ou prestação de serviço. Risco jurídico é uma anomalia que, quando materializada, prova que a relação entre prestador/fornecedor e consumidor deu errado. Por isso, a simples existência de uma ação judicial já é um prejuízo.

Mas, voltando à lógica receita/despesa, para impedir que o risco jurídico desequilibre o orçamento, é preciso cobri-lo. É possível aumentar o preço do produto/serviço, devolvendo ao “pool” de consumidores o resultado financeiro negativo da ação judicial. É possível ainda diminuir custos (com materiais, mão de obra etc.). Pode-se, finalmente, diminuir a lucratividade da empresa, experimentando genuinamente aquilo que se pretende com uma condenação judicial.

Certamente, há limitadores para todas as alternativas acima. Sem uma gestão do risco jurídico, os custos com a rubrica “judicial” podem consumir toda a margem de lucro. Podem, ainda, ao impactar no preço, chegar ao limite daquilo que o consumidor está disposto a pagar pelo produto ou serviço. Podem, por fim, chegar ao limite daquilo que é possível “economizar” com a fabricação do produto ou prestação de serviços. A própria rubrica judicial acaba sendo impactada. Esses limites podem impor às companhias que paguem menos pelos serviços advocatícios que prestam, experimentando serviços menos qualificados (ao menos em teoria) e, com isso, ampliando o próprio risco que queriam ver diminuído.

Como dito, é um círculo vicioso, que, apesar de patológico, tem cura.

E a cura está na contracorrente. Numa virada de postura que visa a diminuir o risco jurídico por meio de estratégias e de gestão. Uma iniciativa como essa não é difícil; quando muito, trabalhosa. “It´s easy if you try” (para lembrar o mundo ideal de John Lennon em “Imagine”).

Basta olhar para o próprio “passivo jurídico”, para dele tirar lições valiosas. Cada ação judicial revela uma deficiência em si. Uma anormalidade na cadeia prestacional que gerou um efeito indesejado. A lição individual de cada processo pode ser confirmada, refutada ou ampliada na análise da carteira judicial da empresa. Quais produtos ou serviços são “campões” nas discussões judiciais da companhia? Em quais localidades esse perfil de ação tem maior presença? Como o Judiciário está julgando essas ações? Os concorrentes têm o mesmo desempenho (mesmo número de ações e condenações judiciais)?

As questões acima, meramente exemplificativas, servem para informar a um olhar interno. Auxiliam na mudança de práticas, posturas e, principalmente, cultura. A partir do momento em que a companhia passa a ouvir o recado do Judiciário, dois efeitos muito positivos surgem: (i) o número de ações judiciais diminui; (ii) o nível da discussão judicial aumenta.

Esse segundo ponto é muito relevante. Ao mudar sua postura, a companhia consegue mostrar melhor ao Judiciário suas tentativas de não romper relações e expectativas dos consumidores. Permite que os julgadores consigam filtrar as reclamações legítimas daquelas meramente oportunistas. Além do menor número de ações judiciais, cai o número de condenações e, também, o valor individual de cada condenação.

A círculo virtuoso tende ao infinito. Quanto mais nele se investe, mais ele dá retorno. A companhia gera uma expertise na gestão de riscos jurídicos, que, em razão disso, ganha constante aprimoramento. Ou seja, ao gerenciar o risco jurídico, diminui-se sua hipótese e sua probabilidade de materialização. Mesmo assim, novas ações irão surgir, que darão novas informações ao sistema de gerenciamento de riscos, o qual, por consequência, irá se tornar ainda mais eficiente. Outras ferramentas podem servir a esse sistema analítico, tais como: ouvidoria, sistema de resolução pacífica de conflitos, observatórios do comportamento do Judiciário são alguns bons exemplos.

Tudo isso só pode ser feito com gestão. Um investimento que vale a pena, pois, em resumo, diminui o peso que a rubrica judicial causa no orçamento da companhia. Essa boa política tem também resultados na sociedade, desinchando o Judiciário com demandas que nele nunca deveriam chegar e, por consequência, permitindo que sua atenção esteja voltada para aquelas demandas que efetivamente não dispensam de sua intervenção. A esse fenômeno, dá-se o nome de desjudicialização. Mais do que um novo nome, o que se quer com isso, é uma nova postura, que garante chegar mais longe, melhor e com esforços mais bem racionalizados aos objetivos empresariais e da sociedade.

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