Impactos da Lei do Caminhoneiro em contratos de concessão de rodovias: caso de “fato do príncipe”?

Recente decisão entende que aumento de custos, mesmo sendo fruto de lei posterior ao início da concessão, não configuraria álea extraordinária.

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Síntese

Embora o tema não seja pacífico inclusive perante os Tribunais, que divergem quanto à aplicação do instituto à luz de diferentes particularidades e realidades contratuais, a garantia de ampla dilação probatória é assegurada constitucionalmente às partes, sendo recomendada especialmente no âmbito de litígios complexos envolvendo contratos de concessão.

Comentário

Sabe-se que a Lei Federal n.° 13.103/2015 (“Lei do Caminhoneiro”) gerou significativos impactos ao setor de rodovias, especialmente pela autorização ao aumento da tolerância máxima de 5% (cinco por cento), instituída pela Lei Federal n.° 7.408/1985, para 10% (dez por cento) na pesagem de carga em veículos de transporte. O limite de, até então, 10% (dez por cento) foi objeto de nova alteração pela Medida Provisória n.º 1.050/2021, posteriormente convertida na Lei Federal n.º 14.229/2021, que majorou a tolerância do sobrepeso bruto transmitido por eixo para 12,5% (doze e meio por cento).

Na prática, verificou-se que o aumento da tolerância permitiu a incorporação do excesso de carga efetivamente aos limites de peso, provocando um incremento no tráfego de caminhões mais pesados nas rodovias. Naturalmente, isto contribuiu para acelerar a degradação e redução de vida útil dos pavimentos, provocando, no ambiente de contratos de concessão, um significativo aumento de custos das concessionárias com ações de manutenção e conservação.

Com isso, muitas concessionárias apresentaram, na esfera de seus ambientes regulados, pleitos de reequilíbrio econômico-financeiro, a fim de que, em razão do extraordinário aumento de custos sofridos, o Poder Concedente recompusesse, com base na Constituição Federal, na Lei Federal n.º 14.133/2021 (“Lei de Licitações”) e Lei Federal n.º 8.987/1995 (“Lei de Concessões”), a equação econômico-financeira dos contratos, reestabelecendo a relação de encargos e retribuições inicialmente pactuadas.

O esforço consistia na demonstração da ocorrência de “álea extraordinária” (isto é, aquela que abrange eventos imprevisíveis, ou previsíveis de consequências incalculáveis, ocorridos após a apresentação das propostas em licitações), especificamente a hipótese de “fato do príncipe”, que se opera sempre que o Poder Público, no exercício de suas atribuições, promove “medidas de ordem geral, não relacionadas diretamente com o contrato, mas que nele repercutem, provocando desequilíbrio econômico-financeiro em detrimento do contratado” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 32ª Ed. Editora Forense, 2019, p. 320).

Apesar dos diferentes tratamentos conferidos em cada caso, o fato é que muitos pleitos que não contaram com desfecho favorável às concessionárias foram levados ao Poder Judiciário, a fim de se buscar, do ponto de vista da legalidade, uma reavaliação da questão.

Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo (“TJSP”) apreciou ação de reequilíbrio econômico-financeiro contratual cuja complexidade do tema rendeu debates.

Em primeiro grau, o pedido de produção de prova pericial da autora, voltado à comprovação do desequilíbrio econômico-financeiro, foi indeferido, sendo a ação, em sede de juízo antecipado (artigo 355 do Código de Processo Civil), julgada improcedente. Argumentou-se que, mesmo sem dilação probatória, revisões legislativas para tolerância de peso seriam esperadas, tratando-se de hipótese de “álea ordinária” (inerente aos negócios empresariais), que afastaria o direito da Concessionária ao reequilíbrio contratual.

Já em segundo grau, o Desembargador Relator apontou o caráter imprescindível da prova pericial para fins de comprovação do desequilíbrio econômico-financeiro. Por outro lado, o terceiro juiz, pronunciando-se desde logo sobre o mérito da questão, argumentou que a Lei do Caminhoneiro não indicaria hipótese de “fato do príncipe”, pois a sua ocorrência dependeria da prática de ato pela autoridade contratante em matéria distinta do objeto contratual, enquanto a Lei tratada nos autos envolveria um dos fins contratuais, isto é, a manutenção das condições das pistas de tráfego. Assim, considerou que, independentemente do dimensionamento do prejuízo, a responsabilidade pelo acréscimo de custos seria do contratado.

Ao final, a Turma Julgadora, por maioria, negou provimento à Apelação da Concessionária, sendo vencido o Relator, cujo voto atribuía parcial provimento ao recurso para anular a sentença por cerceamento de defesa.

Como se nota, o tema não é pacífico, havendo divergências em torno da própria aplicação concreta do instituto do “fato do príncipe”. De todo modo, não se pode negar que o entendimento pela desnecessidade de produção de perícia técnica em litígios envolvendo complexos contratos de concessão é discutível, por potencialmente violar as garantias do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa asseguradas às partes pela Constituição Federal (artigo 5º, LIV e LV).

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