Síntese
Em análise do Recurso Especial 1.771.169/SC, tratando de responsabilidade civil por erro médico em atendimento pelo SUS, mas realizado em hospital privado, os ministros do STJ entenderam que são aplicáveis as regras que tratam da responsabilidade civil do Estado, afastando, portanto, a incidência do Código de Defesa do Consumidor.
Comentário
Através do Recurso Especial 1.771.169, foi submetida ao Superior Tribunal de Justiça a questão relativa à aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor – CDC em relação aos atendimentos médicos prestados em nosocômio privado, através do Sistema Único de Saúde – SUS. O quadro fático se desdobra na verificação do dever de indenizar por suposto erro médico ocorrido quando do atendimento de uma criança, picada por determinado inseto, culminando com seu falecimento.
Ao avaliar a questão, o Tribunal de Justiça de Santa Catarina entendeu pela existência de tal erro e da culpa dos profissionais que realizaram o atendimento. Porém, em sede de recurso especial ao STJ, os réus indicaram que a demanda já estaria prescrita, vez que inaplicável o CDC e o prazo de 5 anos lá previsto.
A principal fundamentação trazida trata da caracterização dos atendimentos prestados pelo SUS, ainda que em hospital privado, como serviço público. No julgamento de 26.05.2020, tal fundamento foi acolhido pela Corte, sobretudo amparado na visão de que, segundo o art. 126 da Constituição Federal de 1988, é dever do Estado assegurar o direito fundamental de todos à saúde, sendo indubitavelmente um serviço público universal e igualitário. Para propiciar tal efetivação há a constituição do Sistema Único de Saúde, financiado com recursos públicos. Dessa forma, determinante foi a observação de que o serviço não é prestado e cobrado individualmente, como o fornecimento de energia elétrica ou os Correios, mas custeado indiscriminadamente pelo Estado a todos os que dele se utilizam através dos valores arrecadados por via tributária.
Nesse cenário, os hospitais privados são inseridos de maneira complementar, sendo inclusive remunerados segundo a Tabela de Procedimentos do SUS fixada pelo Ministério da Saúde. Tendo isso em mente, o entendimento dos ministros foi de que o serviço de saúde, seja ele prestado diretamente ou de forma delegada – como o caso analisado – constitui serviço público social, caracterizado por sua indivisibilidade e universalidade.
Por tais razões, o STJ decidiu pela aplicação do art. 1º-C da Lei 9.494/97 aos casos de erro médico por atendimentos prestados em hospitais privados, mas custeados pelo SUS, estabelecendo o prazo prescricional de cinco anos.
O Supremo Tribunal Federal já apresentou decisões coerentes com esta recente decisão. Em casos penais como o Recurso Ordinário em Habeas Corpus 90523/ES e Habeas Corpus 97710/SC, o STF já consolidou que os profissionais de saúde particulares que prestam serviço ao SUS, quando o fazem, são equiparados a funcionários públicos. Dessa forma, percebe-se que igualmente está a se tratar de atos ilícitos e a referida responsabilização, a qual deve manter consonância nos aspectos penais e cíveis.
Cabe lembrar que a Lei nº 8.080/90, que institui o SUS, estabelece, em seu art. 15, que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem fiscalizar as ações e serviços de saúde. Ainda mais especificamente, o art. 18, inciso XI desta Lei determina que cabe à direção municipal realizar a celebração de contratos e convênio com entidades prestadoras de serviços privados de saúde, bem como controlar e avaliar sua execução. Inviável, portanto, afastar o caráter público dos serviços prestados e a responsabilidade solidária dos entes federativos com supostos atos ilícitos praticados nos hospitais privados que prestam serviços ao SUS, independentemente da modalidade de contratação.
Contudo, este é um entendimento ainda pendente de consolidação, vez que a Quarta Turma do STJ já demonstrou entendimento diverso. Muito embora não tenha gerado efeitos no caso concreto analisado, representa importante decisão, pois traz garantias aos profissionais privados em âmbitos relativos à inversão do ônus probatório e mesmo a dupla garantia que hoje socorre aos servidores públicos, em que a responsabilização é subsidiária, mediante ação de regresso.