Irregularidade na dispensa de licitação configura crime?

Tribunais superiores entendem que o artigo 89 não tem por objetivo de criminalizar a mera inobservância de formalidades legais na dispensa
Henrique-Dumsch-Plocharski

Henrique Plocharski

Advogado da área penal empresarial

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Síntese

Embora a dispensa irregular de licitação possa constituir crime, apenas diante da presença de dois elementos imprescindíveis, quais sejam, o dolo específico e o prejuízo à administração pública, poderá ser cogitada a prática de crime.

Comentário

Contratações ou aquisições diretas pelo poder público, em outras palavras, aquelas que prescindem da realização de licitação, seja de bens, serviços ou obras, não são recentes no Brasil.

É em razão da determinação constitucional de que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processos de licitação pública que assegurem igualdade de condições a todos os concorrentes, que a Lei n. 8.666/93 delimita as hipóteses de inexigibilidade, dispensa ou retardamento da licitação.

Sucessivamente, com a finalidade de promover maior segurança jurídica, a nova Lei Federal nº 13.979/2020 também regulamentou hipóteses de dispensa de licitação, em especial, para casos relacionados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

Mesmo assim, surgiram nos últimos meses inúmeras investigações e processos para apurar a dispensa de licitações fora das hipóteses dispostas em lei, fato típico previsto no artigo 89 da Lei nº 8.666/93, com pena de detenção de três a cinco anos, além de multa.

Neste cenário, a decisão do Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso em Habeas Corpus nº 124.871/PR, assume especial relevância, por ter delimitado muito bem a abrangência do delito em questão.

Asseverou o Ministro que “é relevante assentar que os tipos penais previstos na Lei nº 8.666/93 não tem por objetivo criminalizar a mera inobservância de formalidades legais para a contratação com o Poder Público, mas sim o descumprimento com a intenção de violar os princípios cardeais da administração pública”.

 Não obstante ter o artigo 89 da Lei de Licitações uma redação abrangente, ao prever que incorre nas sanções aquele que dispensar ou deixar de exigir licitação fora das hipóteses previstas em Lei, não poderá haver qualquer penalização a título de culpa, ou seja, por imprudência, imperícia ou negligência.

Assim, fato é que para configuração do delito, exige-se, conforme entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça (Tese 01 da Jurisprudência em Teses com o tema Crimes da Lei de Licitações), a presença de especial finalidade de agir na conduta do agente, consistente na intenção deliberada de causar lesão ao erário.

E mais. Ainda de acordo com voto do Ministro, também é necessário que se tenha efetivo prejuízo ao ente público, entendendo se tratar de delito material, em que a configuração ocorre apenas quando produzido o resultado naturalístico.

Logo, demonstrado que o agente não possuía a vontade de causar prejuízo ao erário (dolo específico), ou, ainda, que não ocorre prejuízo à administração pública em razão da dispensa irregular da licitação, está afastada a incidência do tipo penal em comento.

Em caso analisado pelo Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do Ministro Dias Toffoli, a inexistência do elemento subjetivo do tipo também afastou a configuração do artigo 89.

Consta da decisão, por maioria, no Inquérito nº 2616, que “a incidência da norma que se extrai do artigo 89 da Lei n. 8.666/93 depende da presença de um claro elemento subjetivo do agente político: a vontade livre e consciente (dolo) de lesar o Erário, pois é assim que se garante a necessária distinção entre atos próprios do cotidiano político-administrativo e atos que revelam o cometimento de ilícitos penais” (Inq. 2616, Tribunal Pleno, Relator Min. Dias Toffoli, publ. 28.08.2014).

Em síntese, não se está a dizer que eventual dispensa irregular não poderá ser investigada ou processada criminalmente, porém, a efetiva configuração do delito exige, como visto, a demonstração de prejuízo e dolo específico.

Deste modo, sendo possível comprovar que o agente público agiu com descuido ou ingenuidade ao dispensar a licitação, tendo em vista a urgência de enfrentamento à pandemia, sem a efetiva intenção de prejudicar a administração pública, as irregularidades devem ser identificadas e reparadas exclusivamente em âmbito administrativo, eis que o Direito Penal deve atuar apenas em ultima ratio.

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