O humor sobre propriedade intelectual alheia

A simples paródia (reinterpretação cômica, ainda que jocosa, debochada e satírica) não fere propriedade intelectual alheia, salvo se houver conotação comercial ou ofensiva.
Marcus-Paulo-Röder

Marcus Paulo Röder

Advogado egresso

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Síntese

Os dois casos analisados – em que, a princípio, tratava-se de direitos de marca – convergem para o entendimento de que a simples paródia, isto é, reinterpretação cômica, ainda que jocosa, debochada e satírica, não fere propriedade intelectual alheia, salvo se houver conotação comercial ou ofensiva.

Comentário

O riso é inato ao ser humano. Pesquisas comprovam que a risada ajuda o corpo a relaxar, aliviar o estresse psicológico e ainda é capaz de liberar substâncias benéficas para todo o organismo, inclusive com efeito imunológico. Por isso, quase que intuitivamente, a busca pelo humor é atividade diária e universal.

O Brasil tem uma forte tradição de cultivar o bom humor. No ambiente virtual, pela Internet e nas interações em redes sociais, essa cultura não é nada diferente. Muito pelo contrário, o humor do brasileiro é cada vez mais propagado pelo mundo, inclusive chegando até a ter autoproclamações de ser um “país exportador de memes”.
Mas, e quando o humor passa a ter relevância para o mundo jurídico?

Considerado um dos maiores frasistas brasileiros, o humorista carioca Millôr Fernandes cunhou a frase: “Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira para matar”. Este texto se propõe a discutir especificamente situações em que a piada versa sobre propriedade intelectual de terceiros, ilustrado por dois julgados sobre o tema (um do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e outro do Superior Tribunal de Justiça).

Antes de adentrar no conteúdo dos julgados, porém, cabe tecer rápidos comentários e explanações sobre os conceitos jurídicos em discussão.

Propriedade intelectual e suas limitações

A propriedade intelectual pode ser dividida em duas categorias básicas: direitos autorais (obras literárias, artísticas, audiovisuais, ilustrações, desenhos, programas de computador etc.) e propriedade industrial (patentes e marcas, por exemplo).

No Brasil, a Constituição Federal assegura como direito fundamental a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura e licença (art. 5º, inc. IX). Os direitos autorais, por sua vez, são regidos pela Lei nº 9.610/98, enquanto a Lei nº 9.279/96 rege a propriedade industrial, isto é, há tratamento legal distinto entre as duas categorias.

Inobstante a inegável importância da garantia de proteção à propriedade intelectual, esta não é absoluta e pode sofrer limitações. Neste sentido, a própria Lei de Direitos Autorais dispõe sobre limitações (Capítulo IV), inclusive elencando diversas hipóteses que não constituem ofensas aos direitos autorais (art. 46). Ainda, com maior pertinência ao tema aqui discutido, ressalta-se o teor do art. 47, também da Lei

nº 9.610/98, que dispõe que “são livres as paráfrases e paródias que não forem verdadeiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem em descrédito”.

Muito embora esta regra esteja contida na Lei de Direitos Autorais, discute-se sobre a possibilidade da sua aplicação extensiva para situações que envolvem propriedade industrial. Tal tema foi enfrentado pelos dois julgados que serão comentados a seguir.

Casos ilustrativos

O primeiro caso analisado foi julgado pelo Superior Tribunal de Justiça – STJ em 2017. Trata-se do Recurso Especial nº 1548849/SP, de relatoria inicial do Min. Marco Buzzi, em cujo julgamento prevaleceu o voto divergente do Min. Luís Felipe Salomão.

O caso concreto consistiu em demanda proposta pela titular da marca Folha de São Paulo visando à abstenção da utilização da marca e nome de domínio, em face do réu que havia registrado o domínio www.falhadesaopaulo.com.br – blog que produzia críticas humoradas de matérias publicadas pelo jornal. Como fundamento, a autora sustentava que a grafia do domínio (Falha de São Paulo), semelhante à de sua marca (Folha de São Paulo), violava sua propriedade de marca e poderia induzir o consumidor em erro (o que também tipificaria conduta de concorrência desleal).

Em reforma da decisão de primeiro grau e confirmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (que haviam determinado a suspensão definitiva do domínio), o julgamento perante o STJ compreendeu que a controvérsia não deveria ser decidida pelas regras do direito marcário.

Apesar de reconhecer a semelhança entre os nomes, o STJ compreendeu que a conduta não violava o direito de marca e também não configurava conduta de concorrência desleal, exatamente porque a atividade exercida pelo réu consistia em simples paródia, baseada nas matérias produzidas pelo jornal.

Segundo o Min. Salomão, a “paródia é forma de expressão de pensamento, é imitação cômica de composição literária, filme, música, obra qualquer, dotada de comicidade, que se utiliza do deboche e da ironia para entreter”. Além disso, Salomão também ressaltou que a paródia é reconhecida pelo ordenamento jurídico como uma das limitações ao direito de autor (em referência ao art. 47 da Lei nº 9.610/98) e, como o réu não exercia a atividade com conotação comercial, a demanda deveria ser julgada improcedente.

Esse entendimento do STJ foi utilizado como precedente para decisão do segundo caso analisado (Processo nº 019/1.17.0016360-1), julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em 28.05.2020.

O caso foi proposto pelo Grupo Editorial Sinos S/A (detentora das marcas dos jornais NH e VS) em face da rede social Facebook, em razão da existência e conteúdo veiculado em páginas da rede social denominadas de “Amigos do Vanazzi” e “NH Boring” (sendo a primeira uma fanpage de apoiadores do prefeito de São Leopoldo – RS e a segunda uma fanpage que se utiliza do termo em inglês boring – cuja a tradução é “chato” – e realiza um jornalismo jocoso ao fazer piadas com fatos que ocorrem em Nova Hamburgo – RS).

A autora requereu a exclusão do conteúdo de postagem realizada na fanpage “Amigos do Vanazzi” e exclusão ou bloqueio de acesso à fanpage “NH Boring” por suposta referência aos jornais NH e VS, além de solicitar informações dos dados dos autores administradores e responsáveis pelas publicações nas fanpages, nos termos do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014).

A sentença acolheu os pedidos de exclusão da postagem considerada como ofensiva e determinou o fornecimento dos dados dos autores, contudo, negou o pedido de exclusão da fanpage “NH Boring”. Em segunda instância, o TJRS negou o recurso apresentado pela autora (Grupo Editorial Sinos), valendo-se dos mesmos fundamentos utilizados pelo STJ no caso analisado acima.

Conclusão

Os dois casos analisados, em que, a princípio, tratava-se de direitos de marca, convergem para o entendimento de que a simples paródia, isto é, reinterpretação cômica, ainda que jocosa, debochada e satírica, não fere propriedade intelectual alheia, salvo se houver conotação comercial ou ofensiva.

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