Panorama da arbitragem no setor de rodovias

Com o crescimento da arbitragem como método de solução de disputas no setor de rodovias, a compreensão de seus aspectos legais e procedimentais é essencial para todos os participantes do segmento.
Bruno-Marzullo-Zaroni

Bruno Marzullo Zaroni

Head da área de contencioso e arbitragem

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Não se discute atualmente a possibilidade de a Administração Pública figurar com parte em disputas arbitrais.  A previsão de utilização da arbitragem encontra-se na Lei de parcerias público-privadas (Lei 11.079/2004), na Lei de Concessões (Lei 8.987/95) e na Lei das Estatais (Lei 13.303/2016). A própria Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96) foi alterada em 2015, para fazer constar que a “administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”. 

Há ainda previsões em leis e regulamentos setoriais. A Lei dos Portos (Lei n 12.815/2013) prevê o uso da arbitragem para dirimir litígios com a Administração Pública federal relativos aos débitos das concessionárias, arrendatárias, autorizatárias e operadoras portuárias, ao passo que a Lei n 10.233/01 disciplina a possiblidade de inclusão de cláusulas compromissórias em contratos de transporte aquaviário e terrestre celebrados com a ANTT e a Antaq.

Mais recentemente, foi editado o Decreto 10.025/2019, que disciplina regras para o uso da arbitragem em disputas envolvendo a Administração Pública federal, nos setores portuário e de transporte rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário.

O normativo revogou o Decreto 8.465/2015 (que estabelecia os critérios da escolha da arbitragem para dirigir conflitos no setor portuário), regulamentou o art. 31 da Lei 13.448 (que trata das diretrizes gerais para prorrogação e relicitação dos contratos de parceria dos setores rodoviário, ferroviário e aeroportuário da administração pública federal) e o art. 62, §1º, da Lei 12.815 (Lei dos Portos).

No plano temporal, o referido Decreto, vigorante desde 23 de setembro de 2019, rege as arbitragens decorrentes de convenções de arbitragem celebradas sob sua vigência. Porém, permitiu-se que aditamentos a contratos administrativos em execução introduzam cláusula compromissória. Alternativamente, as partes podem firmar compromisso arbitral para submeter disputas existentes à arbitragem.

Aspecto a ser ressaltado reside nas diretrizes estabelecidas no Decreto para que a Administração Pública se valha preferencialmente da arbitragem. Em síntese, tem-se as seguintes hipóteses:

  • Casos em que a divergência esteja fundamentada em aspectos eminentemente técnicos;
  • Casos em que a demora na solução definitiva do litígio possa: gerar prejuízo à prestação adequada do serviço ou à operação da infraestrutura; ou inibir investimentos considerados prioritários.

Para além de expressar que apenas poderão ser submetidas à arbitragem as controvérsias sobre direitos patrimoniais disponíveis – repetindo o que já consta a Lei de Arbitragem –, o Decreto busca ainda exemplificar quais tipos de disputas recaem nesta categoria, de modo a orientar a celebração de compromissos arbitrais (firmados quando já presente o litígio entre as partes):

  • Casos envolvendo recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos;
  • Casos que exigem o cálculo de indenizações decorrentes de extinção ou de transferência do contrato de parceria;
  • Casos versando sobre o inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes, incluída a incidência das suas penalidades e o seu cálculo.

Já para a hipótese de cláusula compromissória (aquela firmada em abstrato, antes do litígio surgir), poderão ser estabelecidos critérios próprios para submissão do litígio à solução arbitral.

A partir desta breve sistematização legislativa, fica claro que a previsão da solução de conflitos mediante arbitragem é uma realidade em diversos setores da atividade administrativa.

Tão corrente tem sido o seu emprego que, no âmbito da União Federal, foi instituído, em 2018, o Núcleo Especializado em Arbitragem da Advocacia-Geral da União (NEA), unidade responsável pelas atividades de consultoria e assessoramento jurídico e de contencioso arbitral em que a União seja parte ou interessada (consultaraqui).

Especificamente no âmbito das disputas setoriais, grande parte das arbitragens envolvendo entes federais diz respeito ao segmento de transportes rodoviários. Por sua envergadura jurídica e econômica, três disputas do setor merecem destaque:

  1. O caso Galvão (valor em disputa: R$ 690.499.540,66): disputa arbitral na qual a Concessionária de Rodovias Galvão BR-153 SPE S.A. postulava em face da Agência ANTT e da União Federal o reconhecimento de que os obstáculos que enfrentou e que levaram à inexecução do contrato não teriam sido provocados por ela, de modo que não poderia ter sido penalizada com multas e extinção do contrato.  No entanto, o Tribunal Arbitral, em sentença parcial, declarou expressamente a culpa da concessionária por inexecução contratual. Ainda julgou procedentes os pedidos do poder concedente para que a concessionária seja condenada a pagar multas e verbas de fiscalização pelo período que assumiu a concessão da rodovia. Além dessas punições, a concessionária também foi condenada a indenizar a União por danos decorrentes do descumprimento do contrato.  

Trata-se de um precedente relevantíssimo, pois preserva a matriz de risco contratual, reconhecendo que o risco do financiamento foi alocado expressamente à concessionária.  O Tribunal Arbitral compreendeu que a análise de qualquer pleito de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro deve partir da verificação da matriz de riscos contratual. Na perspectiva da decisão arbitral, o direito ao reequilíbrio não surge quando o risco tiver sido expressamente alocado ao contratante que sofreu as consequências da sua ocorrência. A sentença parcial pode ser consultada aqui.

  •  O caso Rota do Oeste (valor em disputa R$ 765.000.000,00): disputa em que a Concessionária Rota do Oeste S.A. pretende, em face do poder concedente (ANTT), a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro durante todo o prazo contratual, sob o argumento de que a concessionária tem indevidamente suportado efeitos gravosos da materialização de diversos riscos alocados (como, por exemplo, aumento do limite de peso bruto por eixo, aumento no preço dos insumos asfálticos, vícios ocultos, remoções de interferências de terceiros na rodovia).  Trata-se de disputa ainda sem decisão final (a Ata de Missão pode ser consultada aqui).
  • O caso MSVIA (valor em disputa R$ 357.000.000,00): disputa arbitral em que a Concessionária de Rodovias Sul-Matogrossense S.A. pretende o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão envolvendo a BR-163, no trecho entre os estados do Paraná e Mato Grosso. Embora ainda em fase inicial, foi reconhecida a ilegitimidade da União, por não ter esta firmado o contrato e por se tratar de concessão de competência exclusiva da ANTT (consultar a ordem procedimental aqui). O caso ganha contornos relevantes por ter sido reconhecido o interesse da União em participar como interveniente anômala no procedimento arbitral, diante das repercussões que a arbitragem poderá acarretar ao procedimento de relicitação em andamento no Ministério de Infraestrutura. A intervenção anômala (Lei 9.469/1997), que permite a participação da União em processos judiciais no qual possa haver interesse indireto – mesmo que de natureza econômica –, teve aplicação analógica à disputa arbitral.

Do breve panorama aqui traçado, é possível concluir que, ao disciplinar a arbitragem como método de solução de disputas no setor de concessões rodoviárias, a legislação cria forte incentivo ao seu emprego e confere maior segurança jurídica a todos os participantes do segmento – concessionárias, poder concedente e o público em geral.

Inegavelmente, a arbitragem vem se estabelecendo como instrumento célere e especializado de solução de conflitos complexos e de índole eminentemente técnica, tal como sucede nas concessões rodoviárias. Não é à toa que as grandes disputas do segmento rodoviário têm migrado do Judiciário para os tribunais arbitrais. Para os participantes do setor de rodovias, o acompanhamento de inovações legislativas e das decisões arbitrais passa a ser um dever, como forma de se compreender o que existe e antever o que está por vir.

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