Projeto de Lei prevê alterações nas relações jurídicas de Direito Privado em razão da pandemia

Caio-Pockrandt-Gregorio-da-Silva

Caio Pockrandt Gregorio

Head da área de controladoria jurídica

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Da equipe de Cível Corporativo

Está em discussão no Senado Federal, o Projeto de Lei (PL) n. 1179 de 2020, que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (Covid-19).

O PL, de autoria do Senador Antonio Anastasia, altera regras que regem as mais diversas relações privadas, suspendendo e prorrogando prazos para cumprimento de obrigações, inclusive, modificando a forma (tempo e modo) de cumprimento de obrigações. As disposições do PL impactam nas mais diversas relações: societárias, condominiais, locatícias, familiares, consumeristas e concorrenciais. Há alterações que impactam até mesmo no direito de propriedade.

Em 02 de abril de 2020, o PL já contava com 19 propostas de emendas parlamentares, muitas apontando a necessidade de supressão de dispositivos ou, então, sugerindo a inclusão de mais dispositivos no Projeto. Várias das emendas apontam a necessidade de melhor ponderação dos efeitos decorrentes dos dispositivos legais constantes do projeto e acendem uma luz vermelha a respeito dos impactos da interferência do Estado em tais relações.

Nesse ponto, é necessário reconhecer que a ocorrência de uma pandemia exige a adoção de soluções imediatas por parte de todos – sociedade, mercado e governo. Mas é fundamental que se mantenha sempre em mente que todas as medidas adotadas – temporárias ou não -, devem ser objeto de reflexão cautelosa, além de muito bem estruturadas, sob pena do surgimento de externalidade negativas.

O PL é estruturado em 12 capítulos e formado por 25 artigos. Inicia delimitando qual o marco temporal para o início dos eventos derivados da pandemia, isto é, qual seria o momento para avaliação dos impactos da crise.

Note-se que em relação ao primeiro artigo do PL, duas emendas (n. 4 e 11) suscitam a necessidade de aprimoramento do texto: qual natureza será atribuída a esses impactos e qual o limite temporal de vigência das alterações “transitórias” ali previstas? Duas respostas que seguem sem resposta concreta e, talvez, seja melhor que assim permaneçam; afinal, tratam-se de questões que dependem de análise casuística e em relação às quais não cabe engessamento em texto legal.

Em relação ao funcionamento e estrutura de pessoas jurídicas, o PL possui implicações significativas, principalmente no aspecto societário. Há uma valorização da realização de comunicação e formalização de atos societários em ambiente estritamente virtual, além de prorrogar-se os prazos (indistintamente) para a realização de assembleias e reuniões, bem como para divulgação e arquivamento de demonstrações financeiras perante os órgãos competentes.

Por motivo não especificado, em geral os prazos suspensos, prorrogados e definidos no PL têm como marco temporal 30 de outubro de 2020.

As disposições relacionadas à resilição, resolução e revisão de contratos, estão previstas no art. 6º e 7º do PL. No art. 6º, há a ressalva de que as consequências da pandemia não possuem efeitos jurídicos retroativos, isto é, os prejuízos e efeitos do Coronavírus somente podem ser arguidos em relação a situações ocorridas após o reconhecimento da pandemia.

Nesse ponto, é possível identificar fontes de inseguranças para as partes. Primeiro, em relação ao marco temporal de reconhecimento da pandemia, uma vez que este foi fixado no parágrafo único do art. 1º como dia 20 de março de 2020, mas no dispositivo legal não há remissão ou referência expressa à data. Segundo, porque ainda que no Brasil o reconhecimento formal da pandemia tenha ocorrido apenas em março, em diversos outros países a crise relacionada ao Coronavírus se iniciou meses antes, gerando impactos substanciais no fornecimento de insumos e, portanto, causando impactos em contratos executados no Brasil (ou sujeitos à legislação brasileira) muito antes da chegada do vírus ao país.

Aqui, o dispositivo além de fazer uma análise superficial da crise ao ignorar os impactos globais desta, desconsidera por completo o impacto dessa previsão em redes contratuais e nas mais variadas atividades econômicas que se interligam e dependem de insumos e bens importados.

Já no art. 7º, exclui-se o aumento da inflação, variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário, enquanto eventos imprevisíveis, outro aspecto problemático da crise. Nessa questão, não se pode ignorar que a definição acerca da imprevisibilidade de um evento em relação a um determinado contrato depende necessariamente de análise casuística.

Há ressalva específica de que as relações consumeristas não se sujeitam ao disposto no art. 7º, mostrando certa preocupação do legislador em proteger as partes mais vulneráveis. Situação que contrasta com o afastamento do prazo de sete dias para arrependimento em relação a compras realizadas por entrega domiciliar (delivery), prevista no art. 8º do PL. Sendo estas as poucas regras específicas em relação a relações de consumo impactadas pela pandemia.

No tocante às relações locatícias, uma das proposições do PL, é que nas ações de despejo ajuizadas a partir de 20/03/2020, que tenham como fundamento o art. 47 da Lei de Locações (ex: falta de pagamento do aluguel), não sejam concedidas medidas liminares para a desocupação do imóvel.

Ainda sobre este tema, o art. 10 do PL prevê a possibilidade de que nas locações residenciais, caso o locatário sofra qualquer tipo de alteração econômico-financeira, poderá requerer a suspensão – total ou parcial – do pagamento dos aluguéis vencíveis a partir de 20/03/2020 até 30/10/2020. Para a hipótese, o locatário deverá comunicar previamente o locador que utilizará dessa faculdade.

Os alugueres vencidos deverão ser pagos parceladamente, a partir de 30 de outubro de 2020, na data do vencimento, somando-se à prestação dos alugueres vincendos o percentual mensal de 20% dos alugueres vencidos.

Em razão da inequívoca controvérsia que o artigo pode causar, já foram propostas quatro emendas apenas sobre este ponto. As emendas sugerem a supressão do art. 10 do PL, principalmente porque sob o ponto de vista do locador, se pessoa física, deve-se considerar que, por vezes, o valor advindo da locação do imóvel é utilizado como fonte de renda para a sua subsistência. Ainda que se trate de imóvel pertencente à pessoa jurídica, o impacto econômico será igualmente relevante, pois necessário à manutenção da atividade empresarial.

Note-se que o tratamento uniforme poderá induzir contratantes a terem condutas de má fé, em busca de enriquecimento ilícito, considerando que em muitas vezes a atividade do locatário não será afetada pela pandemia.

Saliente-se que a legislação vigente já prevê a possibilidade de que as partes contratantes busquem soluções alternativas para tratar de uma situação momentânea de desequilíbrio contratual (negociação de descontos, prazos, prorrogações, isenções, juros, multas, e até resolução contratual), tal como a imposta pela pandemia do Coronavírus.

Além dessas disposições, o PL contém disposições específicas em relação a prazos prescricionais e decadenciais, contratos agrários, usucapião, condomínios edilícios, direito de família e sucessões e até mesmo regime concorrencial, o que não se analisa aqui por uma questão de brevidade.

Importante salientar que até o presente momento o PL não foi votado e, também, que há outros PL em discussão sobre o mesmo tema (PL 1198/2020, PL 1199/2020 e PL 1204/2020, de autoria do Senador Álvaro Dias). Considerando o tema conexo a todos os projetos de lei, foi requerida a sua tramitação conjunta.

Diante da incerteza quanto à eventual aprovação ou rejeição do PL comentado (ou de outros relacionados ao tema), cabe a reflexão sobre quais os limites, vantagens e desvantagens da interferência excessiva do Estado nas relações privadas. Afinal, ainda que diante de uma pandemia, as partes permanecem munidas da autonomia para contratar, renegociar, resolver contratos e, ao fazê-lo, sopesar todos os interesses envolvidos. Dificilmente uma solução única, engessada em texto de lei e imposta às partes, será satisfatória ou resolverá os problemas decorrentes da crise.

A área Cível Corporativo do Vernalha Pereira permanece à disposição para esclarecer sobre este e outros temas de interesse de seus clientes.

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