Avança no Congresso Nacional, após longos anos de tramitação, o Projeto de Lei que busca reformar a Lei Geral de Concessões de Serviços Públicos. A notícia é alvissareira.
Embora a Lei Federal n.º 8.987 – cuja vigência recentemente completou exatos 30 anos – tenha exercido papel de protagonista como principal motor legislativo de propulsão dos investimentos privados em infraestrutura no Brasil ao longo das últimas três décadas, é inegável que certos aprimoramentos ao seu conteúdo, além de bem-vindos, se fazem necessários, seja para refletir as lições aprendidas desde 1995, seja para lidar com os desafios vislumbrados adiante.
Esse tem sido o espírito norteador do Projeto de Lei n.º 7063/2017, cuja relatoria, na Câmara, esteve a cargo do Deputado Arnaldo Jardim (Cidadania/SP): manter a estrutura fundamental da Lei de Concessões, isto é, o seu esqueleto – o que parece extremamente salutar, na medida em que privilegia um diploma normativo cuja eficácia, em linhas gerais, se provou inconteste –, mas, ao mesmo tempo, endereçar, por meio de microcirurgias normativas pontuais e específicas, soluções para diversos temas relevantes, cujo tratamento legal era inexistente ou insuficiente até o momento.
Dentre os diversos assuntos que historicamente têm se repetido e assombrado todos os atores institucionais envolvidos nas concessões brasileiras, merece destaque o estresse na execução contratual. De fato, tem sido recorrente, em setores variados das concessões, constatar, em diversos momentos históricos, que uma grande quantidade de contratos termina por se enredar em dificuldades aparentemente insolúveis.
As razões que levam a este tipo de situação são de múltiplas ordens: deterioração de cenários macroeconômicos entre o momento da licitação e o da execução contratual, comprometimento da higidez empresarial das concessionárias ou de seus acionistas, alterações unilaterais abruptas promovidas pelos poderes concedentes em decorrência de decisões de caráter político e ideológico contra o modelo concessório, promoção de práticas e imposição de sanções equivocadas ou, ao menos, discutíveis por parte de órgãos reguladores etc. A lista de causas, como se nota, é ampla, mas a consequência é sempre a mesma: ativos contratuais em tese saudáveis se tornam absolutamente estressados, prejudicando, ao fim do dia, os usuários dos serviços concedidos e, por tabela, o interesse público.
Pois bem: diante de contextos como os acima sintetizados, em reiteradas ocasiões foi aventada a alternativa de adequação das obrigações contratuais à situação concretamente posta, de modo a propiciar uma execução mais eficiente das avenças. O problema é que, por muitos e muitos anos, esse tipo de arranjo esbarrou em um dogma até então intransponível, segundo o qual, em síntese, as obrigações originalmente impostas às concessionárias não poderiam ser alteradas, sob pena de desfiguração do pacto inicial e consequente burla ao dever de licitar. Segundo os guardiões dogmáticos, contratos estressados deveriam seguir para os mecanismos de extinção, a fim de que seu objeto voltasse a ser licitado.
Embora essa lógica perversa tenha começado a ser desmantelada nos últimos anos, por meio do avanço da consensualidade administrativa – traduzida, por exemplo, nas repactuações de contratos gestadas e moldadas em conjunto por órgãos de controle, poder concedente, agência reguladora, concessionária e mercado –, é incontestável a força advinda da positivação do assunto em um texto legal. E o PL n.º 7063/2017, investido da relevância de lei-quadro das concessões brasileiras, não se furtou a cumprir o papel de dar esse passo histórico.
E o fez de forma singela, mas ao mesmo tempo ampla, por meio dos artigos 23-E, incisos IV e VI, e 27, parágrafo 5º do PL. O primeiro dispositivo prevê, como mecanismos de implementação de reequilíbrio econômico-financeiro contratual, o “ajuste das obrigações contratuais das partes” (23-E, IV). Já o segundo, ao dispor sobre pedidos de transferência de concessão ou do controle societário de concessionário, permite alterações de qualificação técnica e financeira do pretendente sob determinadas condições, autoriza mudanças de forma e prazo para o cumprimento de penalidades e possibilita a conferência de um período de cura para adimplemento de obrigações pelo acionista entrante. Como se percebe, o texto legal aprovado na Câmara dos Deputados é claro e objetivo ao propiciar uma verdadeira bula de prescrições que, se seguidas à risca pela concessionária estressada, podem conduzir ao salvamento de seu contrato.
Já de início, é possível afirmar que o rearranjo das obrigações originalmente pactuadas adquire status legal de mecanismo de recomposição do equilíbrio contratual. Esta prática, se implementada com sucesso, terá, potencialmente, o condão de consertar avenças em dificuldade de modo mais expedito e direto do que os longos processos de repactuação atualmente em andamento.
De outro lado, é inegável que este rol de previsões tem enorme potencial de fomento ao mercado secundário. Quem vivencia o setor de concessões decerto já se deparou, em inúmeras ocasiões, com negociações que emperraram e acabaram sendo encerradas porque os pretendentes gostariam de ver ajustada a matriz de obrigações do contrato estressado e não lograram êxito em consegui-lo. Com as novas disposições estampadas no texto reformado da Lei de Concessões, abre-se uma enorme janela de oportunidade para o redesenho dos contratos, podendo atrair, inclusive, players como os fundos de investimento em infraestrutura, cada vez mais presentes nos leilões e em concessionárias recentemente constituídas.
Por óbvio, a revisão das obrigações não pode ser de tal monta que desnature completamente o contrato, transformando-o, na prática, em outra avença. Essa hipótese extrema, se levada a cabo, poderia causar um refluxo na iniciativa legal, conferindo força ao argumento histórico da suposta burla ao princípio da licitação. Para prevenir este efeito colateral danoso, será preciso, cada vez mais, contar com poderes concedentes e órgãos reguladores dotados de alta capacidade técnica e blindados de externalidades negativas, capazes de fazer a calibragem adequada do novo arranjo contratual pretendido. Finalmente, não se poderá prescindir da atuação dos órgãos de controle. Afinal, eles serão os responsáveis últimos por chancelar, ou não, as alterações estabelecidas.
O PL n.º 7063/2017 segue em sua tramitação, agora no Senado Federal. Apesar disso, parece haver um consenso quanto à maturidade do texto aprovado na Câmara, o que dá confiança à manutenção de seus pontos centrais até a promulgação da nova lei. No caso do redesenho de obrigações contratuais, feita a concertação e seguidos os ritos procedimentais descritos ao longo deste artigo, o saldo é, indubitavelmente, positivo. Se confirmada a sua positivação, sairá vitoriosa a segurança jurídica de um cada vez mais amadurecido setor das concessões de serviços públicos. E, de quebra, se abrirá uma pista de oportunidades de negócio para antigos e novos stakeholders setoriais.