Smart Contracts e o caso Ford: a substituição da atividade humana em contratos automatizados

O retorno automático de carros à loja em caso de inadimplemento do contrato de compra reacende questões sobre os limites dos smart contracts.
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Gabriela Wollertt Tesserolli

Advogada da área de contencioso e arbitragem

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Que o alcance e os limites da tecnologia sempre foram tema de intenso debate, é inegável. O crescente desenvolvimento de tecnologias que podem, inclusive, substituir a atividade humana (intelectual ou não) é tema de especial relevância nas rodas de discussão.

Com os contratos não seria diferente. A revolução digital e o surgimento dos smart contracts trouxeram discussões sobre o impacto da tecnologia nos acordos de vontade. A preocupação é legítima, já que a razão de ser do contrato inteligente é, justamente, permitir a autoexequibilidade das disposições: basta que as partes contratantes estabeleçam condições e que elas se implementem para que os próximos passos do contrato sejam ativados.        

Até então, parecia óbvio _ e o era, de fato _ que essa preocupação, muito embora necessitasse atenção, teria alcances limitados. Afinal, os smart contracts encontravam maior campo de aplicação nos casos em que a efetivação automática de dada cláusula (pela tecnologia projetada) não dependia da participação do obrigado. Por exemplo, satisfeita certa condição (como a entrega de um parecer), a tecnologia realiza automaticamente transferência do pagamento. Tudo acontece num ambiente virtual.

Até pouco tempo atrás, não se falava com naturalidade da autoexecução do contrato em casos de inadimplemento, especialmente quando a situação demandasse a devolução de uma coisa (física), ou que uma das partes realizasse uma tarefa, enfim, quando se realizassem atos materiais no mundo concreto.

A limitação dos smart contracts, no entanto, foi afastada no início desse ano, quando a mídia noticiou que, nos Estados Unidos, a Ford _ uma das maiores fabricantes de veículos automotores do mundo _ obteve patente de invenção que permite que os carros comercializados retornem à loja ou à fábrica em caso de inadimplemento do contrato de compra e venda. Os veículos, inclusive, poderiam ser encaminhados ao ferro-velho caso identificado pelo sistema que a retomada do veículo não seria lucrativa.

Nos EUA, a tecnologia é precedida de sistemas criados por espécies de financiadoras que habilitam nos veículos dados em garantia em um sistema que impede o funcionamento da ignição quando o financiado está inadimplente. Não apenas comina ao adimplemento, mas também impede que o veículo seja ocultado, propiciando a execução da garantia (mediante a coleta do automóvel).

Ainda que nenhuma das tecnologias tenha sido implementada no Brasil _ e que a própria Ford tenha afirmado não intencionar usar a tecnologia patenteada _ , esses sistemas colocam à prova aquilo que, até então, limitava os smart contracts: torna possível a sua utilização mesmo naqueles casos que, em um primeiro momento, dependeriam de atos praticados no mundo concreto. Também indicam que os contratos autoexecutáveis são (ou, em breve, serão) uma realidade inclusive para o consumidor final.

Não se sabe, no entanto, qual será a recepção desses contratos no sistema brasileiro, ao menos na amplitude que o exemplo da Ford apresente. Até o momento, parece não ter havido a necessidade de enfrentamento desses mecanismos pela jurisprudência, tampouco há legislação sobre o assunto.

Mesmo nos EUA _ que, bem se sabe, possui legislação muito menos protetiva que a brasileira _, os contratos inteligentes que envolvam consumidores finais encontram restrições e exigências significativas como, por exemplo, a necessidade de que o consumidor final seja corretamente informado da autoexequibilidade do contrato, ao mesmo tempo em que lhe seja oportunizada a prévia purgação da mora. Muito provavelmente tais condições também serão adotadas também aqui no Brasil.

Desde logo se pode cravar que haverá a discussão da mera possibilidade da autoexecução: os mecanismos de autotutela (que, sob o angulo contratual, é justamente a possibilidade de executar, por si só, um contrato em caso de inadimplemento) são coibidos e desencorajados. Sob o prisma de autoexequibilidade e, principalmente, em face do consumidor, essa discussão ganhará relevo frente aos princípios da proteção consumerista.

A questão, então, deverá ser resolvida pela ponderação dos benefícios e prejuízos a serem encarados em vista da admissão de contratos inteligentes. Nesse aspecto, não se poderá esquecer que, a longo prazo, esses contratos autoexecutáveis garantem uma redução de ônus financeiro ao consumidor: ao conferir autoexequibilidade ao contrato, o risco imposto às partes é reduzido, eis que deixam de estar sujeitas, ainda que parcialmente, à interpretação e, por vezes, discricionariedade de terceiros. 

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