Tarifa Zero: promessa social, dilema político

Caso de Belo Horizonte (MG) acende debate sobre limites jurídicos, fiscais e contratuais da gratuidade no transporte urbano

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Síntese

O PL nº 60/2025, que buscava implantar a Tarifa Zero em Belo Horizonte, foi rejeitado pela Câmara Municipal por 30 votos a 10. A decisão expôs as dificuldades econômicas e jurídicas de viabilizar a gratuidade do transporte coletivo em grandes centros urbanos, antecipando os dilemas de custeio e de equilíbrio contratual que cercam propostas semelhantes no país.

Comentário

A rejeição do projeto que instituía Tarifa Zero em Belo Horizonte – com implantação gradual em quatro anos – reacendeu discussões fundamentais sobre os entraves jurídicos e econômicos envolvidos na gratuidade do transporte coletivo. A proposta previa a criação de uma Taxa do Transporte Público (“TTP”), paga por empresas com dez ou mais empregados, em substituição prática ao vale-transporte. A prefeitura e o setor produtivo manifestaram resistência, apontando impacto econômico significativo. O episódio evidencia a complexidade do debate sobre quem financia, de que forma e com quais implicações para os contratos em vigor.

Ponto elementar: transporte “gratuito” não existe; quando a catraca zera, a conta migra do usuário para outra fonte. Taxas, pela Constituição, exigem divisibilidade e vínculo direto com um serviço específico. Quando o benefício é universal e de fruição facultativa, a base de custeio costuma depender de tributos de outra natureza ou de subsídios orçamentários explícitos. No caso de Belo Horizonte, a TTP enfrentou questionamentos por onerar empresas independentemente do uso efetivo e por suscitar dúvidas de constitucionalidade. Sem uma base financeira sólida e juridicamente legítima, propostas de Tarifa Zero tendem a esbarrar em obstáculos estruturais.

A operacionalização também impõe desafios. Experiências brasileiras mostram que políticas de gratuidade provocam forte aumento de demanda, tanto em cidades de acentuada característica metropolitana – como são os casos de Caucaia, na Grande Fortaleza (+371% em dois anos), e de Luziânia, na Grande Goiânia (+202% em dois meses) – quanto em municípios de porte médio, como Maricá, no estado do Rio de Janeiro (+144% em três anos), e exigem reconfiguração da rede de transporte: linhas, frota, terminais, faixas exclusivas e indicadores de desempenho mais rigorosos. Em cidades menores, onde as redes são menos complexas, esses ajustes podem ser mais simples; já em capitais, a escala amplia custos e pressiona a capacidade de gestão. Sem planejamento detalhado, a qualidade do serviço tende a se deteriorar, comprometendo inclusive o apoio político inicial.

No plano federal, o debate sobre fontes alternativas de financiamento segue em curso. O PL nº 3.278/2021, aprovado no Senado e em tramitação na Câmara, propõe um “Sistema de Mobilidade Urbana Sustentável” com receitas diversificadas – como CIDE-Combustíveis específica, taxas sobre estacionamento em áreas centrais e fundos dedicados. Trata-se de um esforço para reduzir a dependência exclusiva da tarifa, mas que envolve mudanças institucionais e tributárias complexas e de difícil implementação imediata.

A dimensão contratual adiciona outra camada de dificuldade. Substituir a tarifa do usuário por contraprestação pública altera a matriz de riscos e exige instrumentos de garantia para evitar inadimplência, além de revisões contratuais detalhadas para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro. Modelos de remuneração também precisam ser ajustados, pois arranjos baseados apenas em “tarifa-sombra” podem gerar incentivos inadequados em redes densas e caras de operar. Sem transparência, dados auditáveis e governança robusta, a introdução de gratuidades tende a agravar litígios e fragilizar a prestação do serviço.

Em nível nacional, o tema também entrou em pauta. O presidente Lula solicitou a realização de estudos para avaliar a viabilidade de uma política nacional de tarifa zero em ônibus aos domingos e feriados, com o objetivo declarado de estimular o lazer e o consumo nesses dias. A proposta, de caráter “piloto”, concentra a discussão em períodos de menor demanda, o que permitiria mensurar impactos econômicos e operacionais antes de uma eventual ampliação. Ainda assim, a medida reacende os mesmos dilemas de financiamento e execução observados nos municípios: definir fontes estáveis de custeio, ajustar contratos e garantir padrões mínimos de qualidade para evitar que o aumento de demanda comprometa a operação das redes de transporte já pressionadas.

O caso de Belo Horizonte, portanto, não representa uma exceção isolada, mas um sinal claro das barreiras fiscais, jurídicas e contratuais que cercam propostas de Tarifa Zero em grandes centros urbanos. A experiência mostra que o debate vai muito além de “zerar a passagem” e envolve escolhas estruturais complexas, que, se não forem enfrentadas de maneira consistente, tornam tais políticas economicamente insustentáveis e juridicamente vulneráveis.

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