Tragédia climática do Rio Grande do Sul: em meio ao caos, uma decisão judicial deferente à regulação

Poder Judiciário indefere suspensão de cobrança de pedágio pretendida pelo MPF por entender que é temerário fazer gestão de crise por via judicial.

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Síntese

Em deferência ao sistema de regulação setorial e constatados esforços empreendidos por concessionária, ANTT e Polícia Rodoviária para garantir condições de trafegabilidade aos usuários após a catástrofe climática que se abateu sobre o Rio Grande do Sul, decisão proferida pela 10ª Vara Federal de Porto Alegre indeferiu Tutela Antecipada Antecedente pleiteada pelo Ministério Público Federal para suspender cobrança de pedágio na BR-386 até a conclusão total das obras de restauração da rodovia.

Comentário

O desastre climático que se abateu sobre o Estado do Rio Grande do Sul no início de maio de 2024 pode ser enxergado por múltiplas dimensões. Uma delas, de alto potencial imagético, diz respeito ao absoluto colapso de parcela relevante da infraestrutura estadual: redes de energia elétrica, telefonia, água e esgoto foram rompidas; instalações essenciais, como estações de tratamento do serviço de saneamento básico, foram tomadas pelas águas dos rios; o aeroporto Salgado Filho foi inundado; pontes se esfarelaram e foram arrastadas por correntezas intensas. Os danos constatados foram de tal monta que ocasionaram a edição da Medida Provisória n.º 1.221/2024, por meio da qual se instituiu regime jurídico específico (mais célere e mais flexível) para a aquisição de bens e a contratação de obras e serviços, inclusive de engenharia, destinados ao enfrentamento de impactos decorrentes de estado de calamidade pública.

O trecho gaúcho da BR-386, integrante de sistema rodoviário objeto de concessão federal, não escapou de vicissitudes similares. Na sequência dos temporais, houve registro de trechos interrompidos em decorrência da catástrofe ambiental. Com o passar dos dias e com o trabalho incessante da concessionária e do Poder Público, logrou-se obter condições de trafegabilidade, propiciando, mediante conhecimento e aprovação do Poder Concedente, a reabertura da rodovia aos usuários e a consequente retomada da cobrança das tarifas de pedágio – que haviam sido suspensas durante o período de interdição – nos moldes do contrato de concessão.

Entretanto, o Ministério Público Federal ajuizou Tutela Antecipada Antecedente em face da ANTT e da concessionária (n.º 5023162-87.2024.4.04.7100/RS), requerendo, em síntese: (i) a suspensão da cobrança de pedágio nas praças localizadas na BR-386 pelo período necessário à conclusão das obras de restauração da rodovia com o restabelecimento normal da trafegabilidade ou, alternativamente, por no mínimo 3 (três) meses; (ii) a atuação emergencial, para fins de garantia de trafegabilidade adequada, especificamente nos acessos ao Município de Marques de Souza; e (iii) a elaboração e execução de cronograma de obras para acessos laterais do sistema rodoviário, a fim de evitar cruzamentos em locais proibidos.

Em que pesem a inegável boa-fé do MPF e sua legitimidade para ajuizar demanda desta espécie, o Juízo competente (10ª Vara Federal de Porto Alegre) entendeu não estarem presentes no caso a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado do processo, pressupostos processuais necessários à concessão de tutela de urgência. A decisão é salutar e chama a atenção pela profundidade com que analisou os diversos aspectos da controvérsia, mas também, e principalmente, pela deferência ao regime jurídico de regulação das concessões de serviço público.

Já no início da fundamentação, aborda-se a inequívoca extraordinariedade da situação vivenciada pelo Estado do Rio Grande do Sul em função da catástrofe climática, e se reconhece, com absoluta razoabilidade, o esforço empreendido pela concessionária para desobstruir o trecho rodoviário o mais rapidamente possível, de modo a permitir que a população voltasse a circular em condições mínimas de trafegabilidade. Neste sentido, inclusive, ressalta-se que, dada a magnitude dos eventos ocorridos, é natural e esperado que perdurem, por mais tempo, restrições e trabalhos em andamento.

Assim – e aqui a deferência do Judiciário ao sistema de regulação setorial é explicita –, a decisão sustenta que “nesse contexto, embora as medidas pleiteadas pelo Ministério Público Federal sejam bem intencionadas, vê-se que a concessionária e a ANTT estão com a força de trabalho coordenada, juntamente com a Polícia Rodoviária Federal, sendo temerário fazer a gestão da crise pela via judicial. Com efeito, diante dos reparos necessários em diversos pontos da BR-386 (e de muitas outras rodovias federais e estaduais que também foram atingidas), vê-se que a concessionária da rodovia vem envidando os esforços possíveis para garantir a trafegabilidade e melhorar as condições de segurança do trânsito, não competindo ao Judiciário determinar que se concentrem esforços apenas num local ou eleger o que é prioritário dentro do caos geral.”

E não foi só. No tópico seguinte, a decisão, reforçando a deferência à regulação, aponta fundamentos legais e contratuais cuja incidência, segundo o entendimento manifestado, afasta a pretensão do MPF consistente na suspensão da cobrança de tarifa de pedágio enquanto não concluídas integralmente as obras de restauração da rodovia. Sob o primeiro aspecto, faz-se menção ao artigo 6º, § 3º, I da Lei Federal n.º 8.987/1995, de cujo teor se extrai que não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando motivada por razões de cunho técnico ou de segurança das instalações. Em âmbito contratual, por sua vez, invoca-se a cláusula do contrato de concessão em pauta, segundo a qual são estipuladas as hipóteses específicas que ensejariam a prática de isenção da tarifa de pedágio ou a concessão de descontos tarifários pela concessionária.

Para arrematar, a decisão ainda faz digressões que soam bastante pertinentes acerca do risco sistêmico ao qual o setor estaria sujeito caso se procedesse à suspensão da cobrança de pedágio em uma situação extrema como a do caso concreto. Afinal, prestigiar entendimento desta natureza poderia ocasionar, de um lado, aumento do volume de tráfego em uma rodovia ainda sob trabalhos de reconstrução, incrementando a probabilidade de acidentes e, de outro, reduziria a receita da concessionária, com potencial impacto sobre o fluxo de caixa do projeto – o que, em sentido contrário à medida pretendida, redundaria em maiores dificuldades e atrasos nas obras de recuperação da totalidade do trecho.

Como se pode perceber, a decisão proferida – embora obviamente ainda passível de reforma ao longo do processo – é extremamente alvissareira, pois atesta que, passados quase 30 anos da entrada em vigor do atual regime jurídico das concessões de serviço público, o Poder Judiciário de 1º grau encontra-se cada vez mais conhecedor e consciente a respeito da importância de prestigiar – sempre que houver fundamentos para tanto, por óbvio – o sistema de regulação setorial, mesmo quando testado diante de situações de ampla repercussão e comoção social. Em tempos nos quais, em certas jurisdições internacionais, o princípio da deferência administrativa tem sido alvo de ataque e revisão (em 28/06/2024, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu, por 6 votos a 3, revisar seu entendimento acerca do precedente conhecido como “Doutrina Chevron”, cuja origem remonta a caso de 1984), deve-se saudar, mais uma vez, a decisão analisada neste artigo.

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