A sucessão de crises econômicas desde o pós-pandemia tem gerado desafios significativos para o segmento de concessões rodoviárias, de um modo geral, no Brasil. Este impacto é sentido especialmente no que diz respeito à necessidade de manutenção do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de concessão. Esse debate se torna ainda mais complexo diante do excesso regulatório e, por conseguinte, da judicialização lado a lado. Concessionárias de rodovias detêm, em seu departamento jurídico interno, dezenas de demandas judiciais em face do Estado, e este, por sua vez, também litiga contra seus concessionários.
Diante dessa realidade, o Governo Federal adotou iniciativas estratégicas para buscar, consensualmente, a repactuação dos contratos e a manutenção das concessionárias na prestação desse serviço público essencial ao desenvolvimento. Um dos mais importantes marcos regulatórios dessa intenção do Governo é, justamente, a Portaria 848/23 do Governo Federal, a qual estabelece um conjunto normativo voltado a implementar a repactuação e a melhoria nos contratos de concessão rodoviária.
Por outro lado, nas empresas concessionárias há importante esfera de responsabilidade jurídica nos atos administrativos decisórios do ambiente de repactuação, como assinatura de aditivos contratuais, repactuações financeiras e renegociações globais de concessões que se estabelecem no ambiente negocial com o Estado.
E, ao contrário do que se possa imaginar, apesar de a repactuação envolver amplamente o diálogo com o Ente Público, em secretarias e órgãos administrativos com poder avaliativo e decisório, nada impede que haja, por parte do Ministério Público Estadual, ou Federal, eventuais questionamentos a respeito da necessidade, utilidade e adequação da repactuação. Em outras palavras, há uma álea, um risco inerente aos processos de ampla repactuação, mesmo que posterior a sua conclusão.
Um caso que poderia ser utilizado a título de exemplo é, precisamente, o caso que originou a chamada Operação Greenfield, na qual diretores da Caixa Econômica Federal foram denunciados pelo Ministério Público Federal por terem, amparados em laudos técnicos, anuído com alterações nos investimentos de importantes fundos da Caixa Econômica Federal, como o Funcef, Petros, Previ e Postalis, dentre outros. Ao final, a operação teve inúmeras ilegalidades reconhecidas, e os acusados foram absolvidos de todas as acusações.
De modo geral, é possível prever que, caso haja eventual questionamento judicial dos processos de ampla repactuação de reequilíbrio econômico-financeiro das concessões, estes serão feitos em duas esferas distintas de responsabilidade – a cível e a criminal.
No caso de uma repactuação no setor Rodoviário Federal, é previsível que eventuais questionamentos do Ministério Público, ou até mesmo da Polícia Federal, ocorram em torno de certos temas. São eles: prazo de renovação do contrato de concessão da rodovia equivalente à nova concessão; valores da repactuação do reequilíbrio econômico-financeiro e, ainda, a utilização do instrumento da repactuação como forma de burlar novo procedimento concorrencial, a exemplo do que recentemente entendeu o TCU quando da renegociação de concessão de trecho rodoferroviário.
O aspecto da responsabilidade civil merece destaque como primeira esfera, sendo que ela poderá implicar, eventualmente, o Diretor e as pessoas que detêm poder decisório pela condução de uma repactuação entendida como onerosa ao Estado ou, ainda, como voltada a evitar o processo concorrencial, na interpretação do Ministério Público.
Em tais hipóteses, os agentes centrais estarão sujeitos a demandas judiciais de improbidade administrativa. A repactuação, como processo de renegociação de contratos, pode ser suspensa ou mesmo anulada caso sejam comprovados atos de improbidade que prejudiquem o interesse público. A ação de improbidade, por sua vez, visará responsabilizar agentes públicos ou privados (no caso os Diretores e pessoas com poder decisório) por atos que potencialmente causem prejuízo ao erário ou violem princípios da administração pública.
Em relação à esfera criminal, a primeira observação importante é que ela não estará afastada pela simples existência da ação de improbidade. O fato de existir ação cível não impedirá a busca pela responsabilização penal, ainda que seja o mesmo contrato, a mesma repactuação, o mesmo ato ou conduta questionados pelo Ministério Público. Há, conforme entendimento dos tribunais superiores (STF e STJ), uma independência dessas esferas, que se cumulam, portanto. Ademais, como a Lei Geral de Concessões, Lei 8.987/95, não prevê um capítulo específico destinado a eventuais delitos, aplica-se a Lei Geral de Licitações, Lei 14.133/21. E, com base nos mais prováveis cenários de tentativa de responsabilização por parte do Ministério Público, pode-se dizer que eventuais processos criminais versarão sobre dois tipos penais, basicamente. São eles: “fraude ao caráter competitivo da licitação” e “modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo”. Ambos estão previstos nos artigos 337-F e 337-H do Código Penal.
O ponto importante desse aspecto é que, tanto nas hipóteses apuradas pela Polícia Federal quanto na versão do Ministério Público, há excessos, há presunções e há, inclusive, ilações. Cabe à defesa afastar os excessos, delimitar o âmbito de atuação decisória dos Diretores e demonstrar a pluralidade de variáveis que são observadas e discutidas com o Poder Público quando da repactuação consensual das concessões rodoviárias.
O mercado é dinâmico, as alterações na economia global se refletem na política de preços e na execução dos contratos. Não há como blindar, por completo, essas variáveis globais imprevisíveis e seus impactos na execução das concessões rodoviárias de longo prazo. Fiscalizar e buscar assegurar o melhor interesse público é dever das instituições, mas tal caminho não pode ser confundido com a criação de culpados e com acusações infundadas. A renegociação é instrumento bilateral, e o Estado participa dela na decisão, e responsabiliza-se, também, pela repactuação.