A proteção de patente de sementes de sojas transgênicas e o art. 10 da Lei de Proteção de Cultivares

O reconhecimento do direito do proprietário de patente de sementes transgênicas em relação ao chamado privilégio do agricultor.
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Wyvianne Rech Zanicotti

Advogada egressa

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Em 09.10.2019, foi reafirmado o direito de proteção de patente dos desenvolvedores e proprietários de sementes de soja transgênica. A apreciação da matéria foi realizada pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial nº 1.610.728/RS. O referido recurso tratava originariamente de ação coletiva ajuizada por sindicatos representantes de produtores rurais que pretendiam a declaração do direito de reservar sementes transgênicas da soja Roundup Ready (soja RR) para o replantio, a venda da produção como alimento ou como matéria prima e, quanto aos pequenos produtores rurais, de doar ou trocar as sementes reservadas. Tudo isso, porém, sem o pagamento de royalties à proprietária da patente.

O cerne da discussão era se as proprietárias das patentes de sementes de soja transgênica poderiam ou não cobrar royalties sobre condutas qualificadas pelo ordenamento jurídico brasileiro como de “uso livre”, ou seja, previstas no artigo 10 da Lei de Proteção de Cultivares (Lei nº 9.456/97). Tal dispositivo legal dispõe que o direito de propriedade sobre a cultivar protegida não é violado por aqueles que reservam e plantam sementes para uso próprio (i); que usam ou vendem como alimento ou matéria prima o produto obtido do seu plantio (ii); utilizam a cultivar como fonte de variação no melhoramento genético ou na pesquisa científica (iii); aqueles que, sendo pequenos produtores, multiplicam sementes para doação ou troca para outros pequenos produtores rurais (iv), ou, ainda, o faz na qualidade de agricultores familiares (v).

A tese defendida pelos produtores rurais era de que só deveriam ser obrigados a realizar o pagamento de indenização (royalties) quando da primeira aquisição das sementes transgênicas; porém, posteriormente deveria ser aplicado o regime da Lei de Proteção de Cultivares (com incidência do chamado “privilégio do agricultor”). A Lei de Propriedade Industrial, por sua vez, garante aos proprietários de patentes concedidas o direito exclusivo de exploração das tecnologias protegidas, sendo que as limitações aos direitos de patente, previstas na própria Lei de Propriedade Industrial, não abrangem as atividades e práticas reivindicadas pelos pequenos produtores rurais.

A discussão sobre qual legislação prevalece na situação narrada passa não só pela análise da especialidade de ambos os diplomas legislativos, sua anterioridade e a finalidade de sua aplicação, como também pela cogência de normas constitucionais de proteção dos direitos e garantias fundamentais e pelos compromissos normativos assumidos pelo Estado brasileiro ao firmar acordos internacionais de proteção à propriedade intelectual.

A Constituição Federal, desde o título dos direitos e garantias fundamentais, assegura aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, nomes de empresas e signos distintivos. Isso em razão do interesse social e do desenvolvimento tecnológico e econômico do País (inciso XXIX, do art. 5º), o que é corroborado nos artigos 218 a 219-B que dispõem sobre a promoção e incentivos ao desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação.

Além disso, no que diz respeito especificamente às patentes, o Brasil se obrigou, pelo Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (Acordo TRIPs) a proteger os titulares das patentes conferindo-lhes os direitos exclusivos de evitar que terceiros, sem seu consentimento, produzam, usem, coloquem à venda, vendam ou importem com esses propósitos aqueles bens/produtos sobre os quais recaem a patente. Tal proteção se aplica da mesma forma quando o objeto da patente for um processo. Nesse sentido, no que se refere à proteção de patentes relacionadas com matéria viva e à proteção de cultivares, a legislação brasileira as positivou em ambos diplomas legais, ou seja, na Lei nº 9.279/96 (LPI) e na Lei nº 9.456/97 (LPC), respectivamente.

Assim, patentes e proteção de cultivares são diferentes espécies de direitos de propriedade intelectual, ou seja, não há incompatibilidade entre os diplomas legais e nem prevalência de um sobre o outro, pois tratam de regimes complementares de proteção. Essa distinção é importante justamente para definir a aplicabilidade ou não do art. 10 da LPC frente ao direito de patente concedido. Isso foi, inclusive, reconhecido pelo STJ no julgamento acima mencionado.

A razão essencial, portanto, que justifica a não aplicação dos privilégios de agricultor sobre o direito das proprietárias de patentes de sementes de soja transgênica não é a tese de prevalência de uma lei sobre outra por sua eventual especificidade ou finalidade social, mas, sim, a distinção objetiva do bem protegido. A tecnologia desenvolvida pelas proprietárias das sementes de soja transgênica não se confunde com o objeto de proteção prevista na Lei de Proteção de Cultivares. A lei de Propriedade Industrial protege o processo de inserção e o próprio gene inserido na semente de soja e não a variedade vegetal. Com isso, a tese firmada em incidente de assunção de competência pelo STJ foi a de que as limitações ao direito de propriedade intelectual constantes do art. 10 da Lei 9.456/97 – aplicáveis tão somente aos titulares de Certificados de Proteção de Cultivares – não são oponíveis aos detentores de patentes de produto e/ou processos relacionados à transgenia cuja tecnologia esteja presente no material reprodutivo de variedades vegetais.

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