Fraude à licitação e a sucessão de leis no tempo

A nova lei de licitações manteve a fraude à licitação, mas com nova descrição da conduta. É possível aplicar a lei antiga? Quando?
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Dante D’Aquino

Coordenador

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O conflito temporal dos tipos penais da Lei 8.666/93 e da Lei 14.133/2021

O delito fraude ao caráter competitivo da licitação, que inicialmente estava disposto no artigo 90 da Lei Federal n.º 8.666/93, foi revogado pela Lei Federal n.º 14.133/2021. A nova lei, entretanto, manteve o comportamento proibido de fraudar o caráter competitivo da licitação, mas o fez ao incluir o novo artigo 337-F, no Código Penal. A nova redação trouxe alterações, mas manteve a proibição da conduta de fraudar a licitação. 

Está pacificado, portanto, que, apesar da revogação formal do dispositivo 90 previsto na Lei 8.666/93, houve o fenômeno jurídico da “continuidade normativo-típica” – isto é, a nova lei manteve o comportamento proibido, mas previu nova descrição da conduta proibida. 

Com efeito, a nova Lei de Licitações, 14.133/2021, não promoveu a extinção do crime de fraude à licitação (abolitio criminis) previsto na Lei 8.666/93. Apesar disso, em relação ao delito de fraude ao caráter competitivo do processo licitatório, um aspecto crítico deve ser observado. 

É que, apesar de ter havido a continuidade normativo-típica, isto é, a manutenção da proibição com comportamento já tipificado na legislação anterior, a nova redação promoveu alterações que devem ser objeto de cuidadoso exame, caso a caso. 

Para melhor compreensão do que será exposto, imprescindível o exame, lado a lado, dos tipos objetivos, isto é, da redação de cada um dos dispositivos. 

Confira-se:

Nova redação 337-F do CP

Art. 337-F. Frustrar ou fraudar, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação, o caráter competitivo do processo licitatório:Pena – reclusão, de 4 (quatro) anos a 8 (oito) anos, e multa.
Redação antiga – Lei 8666/93 

Art. 90.  Frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório, com o intuito de obter, para si ou para outrem, vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação: (Revogado pela Lei n.º 14.133, de 2021) Pena – detenção, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. 

Conforme se pode verificar da simples leitura dos dispositivos acima, a Lei 8666/90 trazia, na descrição do comportamento proibido, uma apresentação mais precisa da conduta, mais ajustada ao que exatamente era o comportamento de fraudar o “procedimento” licitatório. O tipo penal descrevia a exigência de um ajuste, de uma combinação ou de um expediente utilizado pelos agentes para fraudar o procedimento licitatório e obter a vantagem decorrente da adjudicação do objeto da licitação.

Tais elementos descritivos do tipo exigiam, em eventual caso de fraude, que o Ministério Público fizesse uma descrição detalhada da conduta do agente, amoldando-a, com fundamento em lastro probatório e documental, precisamente, ao comportamento descrito como proibido pelo tipo objetivo. 

Ou seja, o tipo penal do antigo artigo 90 da Lei 8.666/93 era mais detalhado e preciso ao descrever o comportamento proibido. Com isso, exigia-se mais do órgão da acusação e, por conseguinte, do Poder Judiciário ao examinar o caso e aplicar o direito. Na mesma medida, resguardava-se o direito de defesa, pois quanto mais precisa a acusação, mais garantido o direito de defesa.  

Tipos penais mais elaborados geram mais segurança jurídica. Com efeito, apesar de ter ocorrido a continuidade normativo-típica, nos parece que a nova legislação traz um tipo penal menos garantista, mais genérico, menos preciso. 

Esse ponto, contudo, ganha muito relevo quando se está diante de um caso que envolva o direito intertemporal, que necessariamente ocorrerá ante a vigência da nova lei. Casos em que os fatos tenham ocorrido em 2018, por exemplo, sob a vigência da Lei 8.666/93, mas cuja sentença será proferida apenas em 2023, já em plena vigência da Lei 14.133/2021. 

Em hipóteses como essa, defendemos que o juiz deva aplicar integralmente – isto é, caput e penas – a Lei 8.666/93, por força do princípio da irretroatividade da lei penal posterior mais gravosa, previsto no artigo 5º da Constituição Federal. Não nos parece adequado operar, como tem ocorrido em diversos casos práticos, a combinação de dispositivos, adequando-se a conduta ao caput do artigo 337-F do CP com as penas do dispositivo anterior, da Lei 8.666/93.

E não são poucos os casos em que isso ocorre. 

A sentença, em nossa visão, não pode sequer utilizar como fundamento decisório o caput da nova lei, pois, ao serem comparados, verifica-se que os requisitos normativos da descrição típica da Lei 8.666/93 traziam mais elementos descritivos. A lei de licitações anterior individualizava melhor o comportamento de fraudar o caráter competitivo das licitações e, com isso, exigia mais elementos probatórios para o juízo concluir pela procedência da denúncia por aquele dispositivo.

O artigo 337-F, hoje alocado no Código Penal, não traz a mesma riqueza de detalhes e, com isso, exige menos da imputação, e, por conseguinte, reduz o standard probatório formador do juízo de certeza para condenação. 

Dessa forma, percebe-se que a afirmação de que houve continuidade normativo-típica não pode servir de base para aceitação de combinação de dispositivos penais, como se a diferença dos tipos objetivos não impactasse no exercício acusatório e, por conseguinte, no direito de defesa. 

Ademais, é direito do acusado ter a sentença proferida lastreada em razões de decidir que lhe apresentem de modo mais detalhado e analítico o comportamento proibido a ele imputado. Por esta razão, ilegal, em nossa visão, a sentença que realiza combinação de dispositivos valendo-se do caput da nova redação do 337-F e das penas do antigo dispositivo. O princípio da continuidade normativo-típica não pode ser invocado para amparar essa prática que, quando utilizada em casos concretos, resulta em prejuízo ao exercício da defesa. 

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