Nova lei de licitações: igualdade para competir, crime e desenvolvimento

Uma breve análise sobre como o Direito Penal pode atrapalhar o crescimento do País.
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Dante D’Aquino

Head da área penal empresarial

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A Constituição Federal estabelece que obras e serviços serão contratados mediante licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes. Tal disposição, prevista no inciso XXI  do artigo 37 da nossa Constituição, destaca um dos mais importantes princípios do processo licitatório – a igualdade de condições entre os concorrentes.

Essa igualdade de condições entre os licitantes é fundamental para assegurar que o Estado, ao realizar a contratação de uma obra ou serviço, selecione, efetivamente, a proposta mais vantajosa. Além disso, corresponde à verdadeira regra de ouro para a validade do processo licitatório, pois impede que o próprio Estado crie cláusulas que só possam ser atendidas por determinadas empresas (cláusulas indutoras de desigualdade). Trata-se, portanto, de princípio de múltiplas funções. Serve ao Estado, para lhe garantir a seleção da proposta mais vantajosa e serve ao competidor, para lhe assegurar a impugnação de cláusulas discriminatórias.

A lei nº 8.666/93 elevou o princípio da igualdade entre os licitantes à categoria de bem jurídico penalmente protegido. Previu, em seu artigo 90, o crime de frustrar ou fraudar, mediante ajuste, combinação ou qualquer outro expediente, o caráter competitivo do procedimento licitatório. Curioso observar que a pena prevista na lei nº 8.666/93 é de detenção de 2 a 4 anos. Nesse cenário, possível condenação é naturalmente conduzida à substituição da restrição de liberdade por prestação pecuniária ou serviços, nos moldes do artigo 43 e 44 do Código Penal. A consequência para esta conduta, conforme a lei nº 8.666/93, portanto, não é das mais graves. O acusado desta prática, se o fato for isolado, responderá ao processo em liberdade, sendo provável que, ao final, a substituição da pena o aguarde.

No entanto, este cenário irá mudar. E muito.

É que o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou, em junho de 2019, o texto principal do projeto de lei  nº 1.292/95, que consolida a nova lei de licitações. O texto promove um significativo aumento da pena de fraude ao caráter competitivo da licitação, além de simplificar a descrição da conduta, tornando-a  mais abrangente. Violar a igualdade de competir passará a ter severa punição. De acordo com a nova lei, aquele que frustrar ou fraudar o caráter competitivo da licitação estará sujeito a uma pena de reclusão de 4 a 8 anos.

Aos pontos.

Primeiro. Por qual razão aumentar a pena? Bem, a busca por esta resposta nos conduz ao escândalo de fraude à licitação ocorrido em 2006, o qual  ficou conhecido como máfia das sanguessugas, um vergonhoso esquema de compra de ambulâncias superfaturadas. À época do escândalo, a nova lei de licitações já tramitava há mais de uma década no Congresso e houve proposta de alteração – o aumento da pena para quem frauda o caráter competitivo da licitação. A pressão popular chegou à casa legislativa e se refletiu no texto do projeto em pauta.

Segundo. Não só a pena foi ampliada, mas a espécie de pena foi modificada. Na nova lei, a pena é de reclusão e não mais de detenção. Por que? Para permitir o início do cumprimento da pena em regime fechado caso a pena, no caso concreto, ultrapasse 8 anos, como nos processos em que há mais de um crime envolvido, o que é relativamente normal. Corrupção, fraude à licitação, superfaturamento de obras e falsidade documental normalmente gravitam ao entorno do contexto fático e costumam aterrissarar nas denúncias do Ministério Público. Quando houver concurso de crimes, a pena poderá ser superior a 8 anos, o que importará em regime inicialmente fechado.

Ainda: por qual razão elevar a pena mínima para  4 anos (agora é de 4 a 8)? Uma das razões é para dificultar a substituição por prestação pecuniária ou prestação de serviços. De fato, com a pena mínima em 4 anos de reclusão, será remota a hipótese de substituição, pois qualquer causa de aumento já impedirá o benefício, uma vez que o artigo 44, I, do Código Penal estabelece como critério para a substituição que a pena seja igual ou inferior a 4 anos. E, se a pena mínima parte dos 4 anos, será difícil mantê-la.

Em um país em desenvolvimento em que há imensa demanda por infraestrutura, cabe observar criticamente a utilização do direito penal com questões que poderiam ser bem resolvidas na esfera cível. O projeto amplia a insegurança jurídica às empresas que pretendem contratar com a administração pública. Isto porque elas estarão expostas à interpretação lacônica do que vem a ser frustrar ou fraudar o caráter competitivo do processo licitatório. O processo criminal não afastará a ação civil pública por ato de improbidade, nem a multa, além das consequências advindas da própria existência do processo (como a dificuldade em acessar linhas de crédito ou participar de processos licitatórios enquanto processada).

Eis o custo de inflar o Direito Penal.

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