RCR 4 da ANTT: ótimo remédio, mas é preciso calibrar a dosagem

Nova norma revoluciona a regulação setorial, mas curva de aprendizagem e decantação é necessária para garantir razoabilidade e proporcionalidade.
Rodrigo-Pinto-De-Campos

Rodrigo Pinto de Campos

Sócio da área de infraestrutura e regulatório

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Nos últimos 4 anos, a regulação federal do setor de concessões rodoviárias tem experimentado uma verdadeira revolução. O gatilho que a disparou foi a instituição, pela Agência Nacional de Transportes Terrestres – ANTT, ainda no final de 2020, de uma agenda regulatória calcada na elaboração do chamado Regulamento de Concessões Rodoviárias – RCR. Trata-se de um vasto e ambicioso Código Normativo, cujo espectro procura abranger todos os aspectos da esfera de competências da Agência, a fim de promover a consolidação do regramento geral das concessões, buscando manter no âmbito contratual apenas os temas e elementos específicos e pertinentes a cada ativo individualmente considerado.

O RCR tem sido implementado por meio de Resoluções, em etapas. Nesse sentido, após a edição do RCR 1 (que disciplina regras gerais e direitos dos usuários), do RCR 2 (cujo objeto diz respeito a bens, obras e serviços, incluindo a adequação dos procedimentos de sua execução) e do RCR 3 (responsável por abordar o equilíbrio econômico-financeiro contratual), foi publicada, no dia 31/10/2024, a Resolução ANTT n.º 6.053, que aprovou a 4ª norma do RCR, atinente à fiscalização e às penalidades dos contratos de concessão de exploração de infraestrutura rodoviária federais.

A extensão do RCR 4, composto por 144 artigos e 3 anexos, dá a medida exata de sua complexidade, do nível de seu detalhamento e de sua relevância para os agentes setoriais. Sem dúvida, está-se diante de uma norma-chave, responsável pela introdução de um grau de inovação e sofisticação na fiscalização jamais antes experimentado ao longo de toda a vigência do Programa de Concessões de Rodovias Federais – PROCROFE. Naturalmente, um ato normativo desta magnitude abarca uma miríade de comandos, disposições e regramentos, passíveis de abordagem detalhada em artigos específicos. Entretanto, já de início, faz-se necessário chamar a atenção para alguns pontos de alta relevância, conforme se fará a seguir.

Um primeiro aspecto digno de evidente nota consiste no prestígio dado pela ANTT a instrumentos de gestão regulatória da fiscalização das concessões, que, embora não sejam propriamente inovadores – uma vez que já existem e vêm sendo aplicados de forma esparsa ao longo do tempo –, simbolizam, em última análise, a busca pelo fortalecimento de mecanismos consensuais ou, no mínimo, não indutores de litígio. São exemplos desta tendência as previsões de: 

a) adoção de medidas preventivas (artigo 41 e seguintes) – sob as modalidades de alerta de potencial inconformidade, termo de registro de ocorrência, ação educativa ou aviso de não conformidade –, a serem tomadas com o intuito de evitar a ocorrência ou recorrência de infrações; 

b) aplicação de medidas cautelares (artigo 46 e seguintes), por intermédio das quais a Agência poderá impor às concessionárias obrigação de fazer ou não fazer, com o objetivo de evitar a ocorrência ou o agravamento de dano ou risco à infraestrutura, à segurança viária, à execução do contrato de concessão ou aos direitos dos usuários; 

c) celebração de Termo de Ajustamento de Conduta – TAC (artigo 76 e seguintes), para fins de correção de descumprimentos de obrigações contratuais, legais ou regulamentares; 

d) celebração de Acordo Substitutivo de Multas (artigo 86 e seguintes), visando converter penalidades pecuniárias em obrigações de investimento ou outras ações de interesse público, em benefício dos usuários da concessão; e

e) instituição do Regime de Recuperação Regulatória (artigo 117 e seguintes), na condição de instrumento de gestão excepcional e transitório voltado à promoção da recuperação de concessionárias com desempenho insatisfatório e sob risco de extinção contratual por caducidade.

Embora a implementação de todos estes instrumentos, por si só, já demande estudo aprofundado e propicie discussões de alta relevância – como, por exemplo, acerca dos limites da discricionariedade para a imposição de medidas cautelares (cuja abrangência pode incluir até mesmo a redução da tarifa de pedágio) e sobre a necessidade, em qualquer cenário, de preservação do equilíbrio econômico-financeiro contratual –, o tema que tem suscitado maior debate desde a fase de Audiência Pública do RCR 4 é o da criação de um regime de classificação das concessionárias (artigo 100 e seguintes) em 4 Classes (A, B, C e D), com base no qual serão instituídos parâmetros de aferição do cumprimento das obrigações previstas nos respectivos contratos de concessão e na regulamentação da Agência, e cujo resultado orientará o tratamento diferenciado e particular a ser dado pela fiscalização a cada concessionária.

O principal foco de preocupação setorial reside na eventual falta de proporcionalidade e razoabilidade dos critérios previstos para a determinação desta classificação, cuja periodicidade será anual. De fato, o regime aparenta ser excessivamente draconiano e modelado de sorte a criar um forte polo gravitacional em torno da Classe D – que, uma vez atingido por uma dada concessionária, mesmo se em decorrência de descumprimentos ou inexecuções pontuais num determinado ano de fiscalização, somente será superado, conforme a sistemática constante da norma, se um grande número de parâmetros voltar a atingir altos níveis de excelência no ciclo de fiscalização seguinte –, gerando uma espécie de “atoleiro” regulatório do qual será difícil a concessionária se desvencilhar. Além disso, procedimentos fiscalizatórios estão sempre sujeitos à prática de atos discricionários, que devem ser revestidos da mais ampla motivação, sob pena de eventualmente conduzirem à atribuição de notas equivocadas, redundando em indevido prejuízo (regulatório e, indiretamente, econômico-financeiro) às concessionárias.

Tudo considerado, é razoável afirmar que a edição do RCR 4 é salutar e simboliza, tal como já notado nos seus 3 congêneres anteriores, o sucesso na execução do desafio hercúleo a que se propôs a ANTT há quase 4 anos, consistente em executar a mais ampla modernização regulatória já experimentada pelo setor de concessões rodoviárias. Contudo, os temas aqui mencionados devem ser cuidados com máxima atenção, e podem inclusive ser revistos no âmbito do RCR 5, ainda em gestação, sob pena de evitar-se a invocação do dito popular segundo o qual se o remédio for bom, mas a dosagem for descalibrada, o paciente, ao invés de desfrutar da cura de seus problemas, pode terminar por perecer.

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