Há uma premissa, assentada na origem histórica do Direito Administrativo brasileiro e na perspectiva desse ramo do direito a partir da ótica do Estado, que defende a quase imutabilidade dos contratos administrativos, cujas obrigações devem ser cumpridas exatamente tal como pactuadas, e, logo, que eventuais alterações só deveriam ocorrer se fossem destinadas a atender o interesse público, cuja única protetora é a Administração Pública, que, em prestígio desse interesse, pode promover alterações unilaterais nos citados contratos.
A premissa acima indicada, de extrema simplificação, dada a complexidade do tema, vem sendo questionada há algum tempo, não apenas pela doutrina, que reconhece a necessidade de adaptação dos contratos às alterações sociais, tecnológicas, econômicas, ambientais – para citar algumas –, mas pela realidade da execução dos contratos, especialmente quando temos em foco os de maior longevidade.
O fato é que, desde o início da década passada, as alterações legislativas vêm incorporando soluções concertadas, que colocam na mesa de negociação os diversos atores envolvidos, com o objetivo de buscar a melhor solução, construída por meio de visões e propostas multilaterais.
Não é demais lembrar que as alterações produzidas na LINDB pela Lei 13.655/18 autorizam definitivamente a utilização de métodos consensuais pela administração pública brasileira, com o objetivo pragmático de conferir o maior proveito possível com o menor dispêndio necessário na construção do interesse público e estabilização das relações jurídicas.
Nesse sentido, merece atenção a amplitude da prescrição contida no art. 26 da LINDB, que autoriza explicitamente a celebração de “compromissos com os interessados”, com o objetivo de colocar fim a controvérsias jurídicas e interpretativas, mediante solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais.
Não fosse isso suficiente para fundamentar acordos e compromissos republicanos nas mais variadas frentes envolvendo a administração pública, a Lei n.º 14.210/21, que alterou a Lei Federal de Processo Administrativo (Lei n.º 9.784/99), trouxe para o processo administrativo brasileiro a possibilidade de haver “decisão coordenada”.
O art. 49-A estabeleceu os requisitos para o cabimento das decisões coordenadas, autorizando o uso do expediente para as hipóteses em que:
- exijam a participação de três ou mais setores, órgãos ou entidades;
- a matéria seja relevante; e
- houver discordância que prejudique a celeridade do processo administrativo decisório.
Em vertentes mais setoriais é necessário considerar a Lei de Relicitação (Lei n.º 13.448/17) e a Instrução Normativa n.º 91/2022, que institui, no âmbito do Tribunal de Contas da União, procedimentos de solução consensual de controvérsias relevantes e prevenção de conflitos afetos a órgãos e entidades da Administração Pública Federal.
Todo esse arcabouço cria condições suficientemente seguras para que acordos sejam desenhados a partir de justificativas e dados sindicáveis.
Embora exista muita resistência dos entes e entidades públicas, na maioria das vezes por absoluto desconhecimento, há recentes exemplos de acordos celebrados em prestígio ao interesse público.
Recentemente o Município de Barcarena, cidade de 130 mil habitantes na região metropolitana de Belém (PA), propôs e conduziu negociação com a concessionária dos serviços de saneamento para realinhar os investimentos que permitam atingir as metas de universalização do setor em 2025, oito anos antes do que determina a lei. O acordo teve a participação do Ministério Público.
No setor de rodovias, o Governo de Mato Grosso, com participação da Agência Nacional de Transportes Terrestres e aprovação do Tribunal de Contas da União, reestruturou o contrato de concessão da BR-163/MT. A solução construída culminou na assinatura de um termo de ajustamento de conduta para a repactuação de prazos de entrega de obras e investimentos e o repasse do controle acionário da Concessionária ao Governo de Mato Grosso, por meio da empresa estatal MT Par, que fez um aporte financeiro importante.
Esses são dois bons exemplos de que, libertos das amarras da impossibilidade de transacionar temas que envolvem interesse público, há caminho para as soluções consensuais, que podem ser construídas no ambiente administrativo, de forma bilateral ou multilateral, e, ainda, contar com a participação da sociedade civil, por meio de consultas e audiências públicas.