A criminalização da inadimplência tributária

O Supremo Tribunal Federal decide tornar crime a simples falta de recolhimento de tributo e contraria sua própria súmula vinculante.
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Dante D’Aquino

Head da área penal empresarial

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Síntese

A decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal afronta o próprio entendimento da Corte exposto na súmula vinculante n.º 25, a qual dispõe ser “ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. É do próprio Ministro Luís Roberto Barroso a afirmação, na estrutura do voto que prevaleceu, de que “o valor do ICMS cobrado do consumidor não integra o patrimônio do comerciante, o qual é mero depositário desse ingresso de caixa”.

Comentário

Em 19.12.2019, o Supremo Tribunal Federal – STF aprovou a tese de que a inadimplência tributária deve ser criminalizada, desde que estejam presentes algumas condições, tais como a reiteração da conduta e a “consciência” do inadimplemento. A respeito, firmou o STF que “o contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º (inciso II) da Lei 8.137/1990″. Tal entendimento foi assentado quando do julgamento, pelo plenário daquela Corte, do recurso em Habeas Corpus n.º 163.334/SC.

A decisão do Supremo abre grande margem para o Direito Penal e seu estigma negativo serem utilizados como arma de cobrança contra toda atividade empresária, inclusive aquelas que envolvem outros tributos que não o ICMS. É que, diante dos casos concretos, considerando-se o faturamento contábil mensal de uma empresa, impossível não se falar de comportamento reiterado, contumaz. Da mesma forma, difícil sustentar a ausência de conhecimento da situação contábil de sua própria atividade de sustento.

Dentro do contexto contábil empresarial, o equívoco no preenchimento da nota emitida ou da informação a ser enviada à Receita Estadual ou Federal é notado meses após a sua prática ser implantada internamente. Na contabilidade de uma empresa, então, é comum a reiteração de comportamentos; afinal, o regime de recolhimento tributário e de informações ao fisco exige isso. Assim, quando a informação contábil é questionada pelo fisco (estadual ou federal), isso ocorre após meses ou anos de sua adoção como rotina na empresa. Dessa forma, o requisito da repetição do comportamento é facilmente alcançado pelo Estado, bem como o da consciência (dolo).

É preciso descortinar o entendimento que está subjacente (talvez explícito para alguns) nessa decisão do Supremo Tribunal Federal. A sanha arrecadatória do Estado chegou a um novo patamar, já que a utilização do Direito Penal para coagir o contribuinte, pessoa física ou jurídica, a recolher os tributos aos cofres do Estado é franca e sem pudores. O Estado se vale do grave estigma que o Direito Penal e a acusação criminal podem imprimir sobre o contribuinte para forçá-lo a recolher o imposto, seja ele qual for.

O fato é que essa finalidade do Direito Penal não é compatível com grande parte das legislações internacionais democráticas, que proíbem a prisão por dívida civil, a exemplo do Pacto de São José da Costa Rica, que o Brasil se comprometeu a respeitar quando o promulgou através do Decreto n.º 678, de novembro de 1969. Nesse decreto, que internaliza a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o Brasil aceitou banir a prisão civil por dívida.

E a decisão do Supremo, infelizmente, não observa esse compromisso assumido pelo Estado brasileiro. Dando interpretação ao artigo 2º, inciso II, da Lei Ordinária nº 8.137/90, a decisão do Supremo Tribunal Federal mostra-se contraditória com a diretriz assumida pelo País há mais de quatro décadas, em Tratado que foi recepcionado pela Constituição de 1988 com hierarquia, para uma parcela importante da doutrina jurídica , de norma constitucional (isto é, acima da lei ordinária n.º 8.137/90).

Bem de perto, a decisão adotada pelo Supremo Tribunal Federal afronta o próprio entendimento da Corte que a levou a editar a Súmula Vinculante n.º 25, a qual dispõe ser “ilícita a prisão civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”. Note-se que é do próprio Ministro Luís Roberto Barroso, a afirmação, na estrutura do voto que prevaleceu de que “o valor do ICMS cobrado do consumidor não integra o patrimônio do comerciante, o qual é mero depositário desse ingresso de caixa que, depois de devidamente compensado, deve ser recolhido aos cofres públicos”.

Dispensadas maiores reflexões sobre o tema ora exposto, verifica-se diariamente uma nefasta consequência, a que Jesús-María Silva Sanchez, criticamente, tem denominado de “a expansão do Direito Penal” ou “Direito Penal de segunda velocidade” , que se legitima a partir de um discurso de proteção de bens jurídicos supraindividuais de conteúdo econômico, como o erário público, mas termina por revelar o que, realmente, mais interessa ao Estado.

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