TRF da 4ª Região: dolo genérico basta para configuração de ato de improbidade por violação aos princípios da Administração Pública

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O artigo 11 da Lei nº 8.429/92 prevê que constitui improbidade administrativa o ato que atenta contra os princípios da administração pública ou qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições. O dispositivo traz algumas hipóteses meramente exemplificativas destes atos, como frustrar a licitude de concurso público, deixar de prestar contas e negar publicidade aos atos oficiais.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já consolidou o entendimento de que para a configuração da improbidade tipificada no artigo 11 exige-se dolo: Segundo iterativa jurisprudência desta Corte, para que seja reconhecida a tipificação da conduta do agente como incurso nas previsões da LIA é necessária a demonstração do elemento subjetivo, consubstanciado pelo dolo para os tipos previstos nos arts. 9º (enriquecimento ilícito) e 11 (violação dos princípios da Administração Pública) e, ao menos, pela culpa nas hipóteses do art. 10º (prejuízo ao erário) (STJ, Informativo nº 0495).

Recentemente, em setembro de 2016, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região editou a Súmula nº 94 com a seguinte redação: a tipificação do ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública, previsto no artigo 11 da Lei nº 8.429/92 exige apenas o dolo genérico, consistente na vontade de praticar a conduta.

A Súmula nº 94 do TRF da 4ª Região segue o mesmo entendimento do STJ: é pacífica a jurisprudência desta Corte de que o ato de improbidade administrativa previsto no art. 11 da Lei 8.429/92 exige a demonstração de dolo, o qual, contudo, não necessita ser específico, sendo suficiente o dolo genérico. O Tribunal de origem foi categórico em afirmar a presença do elemento subjetivo, in casu, o dolo (AgInt no AREsp 876.248/MA, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 29.09.2016).

Portanto, segundo o STJ e o TRF da 4ª Região, basta que o agente queira praticar o ato e que este ato viole os princípios da Administração Pública para que se configure a improbidade. Não se exige que o agente tenha a intenção de violar os princípios, mas apenas e simplesmente a intenção de praticar o ato em si (ainda que sem a ciência ou intenção de que este ato seja ilícito ou até ímprobo).

Esse entendimento, porém, é criticável. Afinal, todo ato é praticado por vontade do agente. Embora seja possível imaginar omissões sem intenção de se omitir, é impossível cogitar um ato comissivo (ativo) que pudesse ser praticado sem que o agente queira praticá-lo. Por exemplo, se um documento é assinado, é porque se quis assinar; se um edital é publicado, é porque se quis publicar.

Imagine-se a seguinte situação: um Prefeito assina um contrato administrativo que não foi precedido do devido processo licitatório (suponha-se que não foi observado o prazo mínimo de publicidade do Edital).  Ele não tinha conhecimento das falhas do processo licitatório e não tinha qualquer intenção de beneficiar aquela empresa contratada ou de violar princípios: apenas assinou o documento presumindo que os servidores responsáveis fizeram o devido processo licitatório, até diante da impossibilidade de o Prefeito conferir a legalidade de absolutamente todos os processos licitatórios. Porém, é ajuizada ação de improbidade contra o prefeito, porque o seu ato de assinar o contrato violou os princípios da Administração Pública. Nesta situação, poderia restar configurada a improbidade independentemente da vontade do Prefeito de violar os princípios da Administração Pública (dolo específico): basta que ele tenha tido a óbvia a vontade de assinar o documento (dolo genérico).

E, por força do art. 3º da Lei de Improbidade, o mesmo raciocínio poderia ser aplicado à empresa contratada. A empresa teria apenas acudido ao certame, presumindo legítimos os atos administrativos, e apresentado a melhor proposta. No raciocínio do STJ e da súmula 94 do TRF4, pouco importaria se os agentes públicos que promoveram o certame não tivessem a intenção de beneficiar a empresa e que a inobservância do prazo de publicidade do Edital tenha sido apenas um erro, sem a intenção de restringir a competitividade da licitação. Também pouco importaria que a empresa tivesse agido de boa-fé: ao ser contratada ela foi beneficiada por um ato de dolo genérico (a intenção do servidor de publicar o Edital e do Prefeito de assinar o contrato), não se exigindo o dolo específico (a intenção de violar o princípio da legalidade e a competitividade da licitação).

Neste contexto, parece que o entendimento do STJ e da súmula 94 do TRF4 ao admitir o dolo genérico vai de encontra com outro entendimento consolidado pelo STJ: que ilegalidade não se confunde com improbidade.

Se o agente pratica conscientemente um ato (já que todos os atos comissivos são conscientes), ainda que ele não tenha a intenção de com este ato alcançar objetivo ilegal ou violar os princípios da Administração Pública, ele poderia ser condenado por improbidade simplesmente porque quis praticar o ato.  Bastaria que o ato violasse os princípios da Administração Pública para que ele fosse considerado ímprobo.

O conflito entre os entendimentos (admissão do dolo genérico vs diferença entre improbidade e ilegalidade) é evidenciada pela hipótese cogitada acima: o ato de lançar licitação com inobservância do prazo mínimo de publicidade do Edital – e o ato de assinar contrato administrativo nestas condições – são indubitavelmente ilegais, porque descumprem as regras da Lei de Licitações e violam os princípios da legalidade e da competitividade das licitações. Contudo, não parece razoável que somente isto baste para a configuração da improbidade. Se os agentes públicos tiveram a intenção de publicar o Edital e de assinar o contrato, mas não tiveram a intenção de descumprir a Lei de Licitações e não tiveram a intenção de restringir a competitividade, a conduta não passaria dos limites da ilicitude, isto é, não seria suficiente para configurar a improbidade.

Assim, em respeitosa crítica ao entendimento do STJ (agora sumulado pelo TRF4), entende-se que a diferença entre a ilegalidade e a improbidade reside exatamente no dolo específico, principalmente para a improbidade no artigo 11. Admitir o dolo genérico (a simples intenção de praticar o ato, pouco importando o que o agente objetiva com aquele ato) é permitir, em alguns casos, a equiparação da improbidade à mera ilegalidade. Por isto, entende-se que a configuração da improbidade pelo artigo 11 da Lei nº 8.429/92 depende do dolo específico, isto é, da intenção do agente de violar os princípios da Administração Pública: a intenção de agir contra a lei para alcançar um objetivo ilegal.

Contudo, apesar das críticas, fato é que o Poder Judiciário vem admitindo o dolo genérico e, por isso, os agentes públicos devem estar cada vez mais atentos aos seus atos. Também as empresas que contratam com o Poder Público precisam adotar comportamentos preventivos, verificando a legalidade das licitações e dos contratos que celebram. Constatada qualquer irregularidade, a empresa deve agir, seja impugnando o Edital ou até recusando contratações não precedidas de licitação quando esta for obrigatória. A atuação jurídica preventiva pode evitar prejuízos financeiros e à imagem da empresa em futura ação de improbidade administrativa.

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