A “ação arbitral” do Marco Legal do Saneamento

A legislação dá ferramenta relevante à Agência Nacional de Águas para solucionar disputas, mas que não se confunde com a arbitragem propriamente dita.
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Caio César Bueno Schinemann

Advogado da área de contencioso e arbitragem

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O novo Marco Legal do Saneamento, com as alterações promovidas pela Lei nº 14.026/2020, acrescentou à Lei nº 9.984/2000 o art. 4º-A, que em seu § 5º estabelece: “A ANA disponibilizará, em caráter voluntário e com sujeição à concordância entre as partes, ação mediadora ou arbitral nos conflitos que envolvam titulares, agências reguladoras ou prestadores de serviços públicos de saneamento básico”. Cabe compreender o que exatamente a Lei pretende instituir quando fala em “ação mediadora” e “ação arbitral”.

A escolha do termo “ação” pela Lei é imprópria. Especialmente quando ligada a solução de conflitos, como no caso,“ação” é um termo com sentido jurídico bastante próprio – o direito de provocar um órgão (estatal ou não), com função jurisdicional, exigindo a solução de determinado conflito de forma tendente à imutabilidade.

A “ação” do Marco Legal do Saneamento está muito longe disso. O termo, aqui, deve ser entendido de forma ampla, como um sinônimo de “atividade” – termo utilizado na Lei de Mediação (art. 1º, p. único).

Feita a ressalva, cabe questionar: o que é a “ação” (atividade) mediadora e arbitral da ANA?

A atividade mediadora não desperta maiores controvérsias: pode a ANA promover a autocomposição dos atoresdo mercado de saneamento, em especial por meio da disponibilização de mediadores com conhecimento técnico sobre os temas em disputa. Tudo nos termos já amplamente previstos pela Lei de Mediação.

O debate ganha complexidade quando se fala na atividade arbitral a que faz menção a Lei. De início é necessário repelir qualquer confusão entre tal instituto e a arbitragem propriamente dita, esta última compreendida como exercício de função jurisdicional por um árbitro, que resolve determinado conflito de forma definitiva, imutável e obrigatória às Partes.

A distinção é tão evidente que, em outro dispositivo, o novo Marco Legal do Saneamento remete à arbitragem propriamente dita, ao inserir o art. 10-A na Lei nº 9.984/2000, cujo § 1º estabelece que “Os contratos que envolvem a prestação dos serviços públicos de saneamento básico poderão prever mecanismos privados para resolução de disputas (…) nos termos da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996”.

Em não se tratando de arbitragem propriamente dita, no que consiste a tal “ação arbitral”?

Ressalvada, novamente, a escolha pouco feliz da terminologia empregada, “arbitragem” e vocábulos de mesmo radical são polissêmicos e dizem respeito, em sentido amplo, a atribuição e direção de determinada questão.

Pense-se, por exemplo, no arbitramento – técnica contratual em que se estabelece a um terceiro a função de integrar determinado elemento de um negócio jurídico incompleto (como o preço) – art. 485 do CC. Ou, ainda, na “arbitragem irritual” do direito italiano, pela qual um terceiro prolata decisão, mas de caráter meramente contratual (e não jurisdicional), com força vinculante de um negócio jurídico (anulável, portanto).

As agências reguladoras possuem competência para prolatar decisões administrativas – um dos escopos da função regulatória é justamente dirimir conflitos surgidos no setor regulado. A “ação arbitral” do Marco Legal de Saneamento, portanto, consiste na prolação de decisão administrativa pela ANA com a qual pretende solucionar determinado conflito em ambiente administrativo. Diferencia-se, portanto, da mediação por não pressupor a autocomposição, mas uma solução (administrativa) adjudicada.

É necessário ficar claro que o produto da “ação arbitral” perante a ANA é uma decisão administrativa, e não jurisdicional. Disso decorrem duas relevantes repercussões: (i) não há tendência à imutabilidade, pois não há formação de coisa julgada; e (ii) a decisão está sujeita ao escrutínio do Poder Judiciário, inclusive quanto ao seu conteúdo, como qualquer decisão administrativa.

Não se nega a utilidade prática de mecanismo desta natureza. Em especial porque a solução adjudicada da agência reguladora conta com a autoexecutoriedade que é inerente aos atos administrativos. E também porque, no âmbito das agências reguladoras, há especialidade técnica que confere ainda maior legitimidade à decisão administrativa prolatada.

O que não se pode conceber é, partindo dos termos equívocos e pouco claros utilizados pela Lei, concluir que a Agência Nacional de Águas – ou qualquer outra agência reguladora – possui competência para, com força de jurisdição, decidir definitivamente conflitos que possam surgir em contratos administrativos regulados.

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