O axioma de Pedro Malan e as concessões de infraestrutura

Como o oportunismo regulatório retroalimenta a máxima segundo a qual "no Brasil, até o passado é incerto", e o que fazer para mitigar este problema.
Rodrigo-Pinto-De-Campos

Rodrigo Pinto de Campos

Sócio da área de infraestrutura e regulatório

Pedro Sampaio Malan é um dos mais brilhantes economistas brasileiros. Dentre as diversas atividades que desempenhou ao longo de sua trajetória, as de Presidente do Banco Central no Governo Itamar Franco e de Ministro da Fazenda nos 8 anos do Governo Fernando Henrique Cardoso são as mais frequentemente ressaltadas. Entretanto, embora Malan seja um dos chamados “pais do Plano Real” – o que, por si só, serviria de cartão de visitas e sinônimo de êxito a qualquer profissional –, uma breve pesquisa no Google revela que, atualmente, seu nome é mais citado em virtude de uma frase tão singela quanto verdadeira, cuja autoria é atribuída ora a ele, ora a Gustavo Loyola, também ex-Presidente da autoridade monetária. Esta máxima, que se tornou um verdadeiro axioma, prega que “no Brasil, até o passado é incerto”. 

Ainda que o espectro de aplicabilidade dessa proverbial afirmação seja evidentemente amplo – daí o porquê, aliás, de sua recente popularização –, vamos dirigir o nosso foco a um tema específico: os contratos de concessão de serviços públicos que envolvem a execução de obras de engenharia, voltadas à implantação de infraestruturas complexas. Na gestão deste tipo contratual, o Poder Público tem se valido, recorrentemente, de uma prática que vamos denominar de oportunismo regulatório, por meio da qual se pretende, sempre com a melhor das intenções, alterar um passado contratualmente estabelecido – e, portanto, “certo” –, para impor ao setor privado a assunção de custos adicionais, mas sem direito à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro original destas avenças.

É importante deixar claro que não se está tratando, aqui, das chamadas áleas extraordinárias, isto é, situações supervenientes e imprevistas à época da celebração do respectivo contrato. As matrizes contratuais são em geral razoavelmente claras a esse respeito e disciplinam o modo pelo qual o risco da materialização destas espécies de eventos será atribuído a uma das partes, ou repartido entre ambas, segundo índices preestabelecidos. 

Mas, do que estamos falando, então, quando aludimos a oportunismo regulatório? Falamos da prática, muitas vezes usual e corriqueira, de o Poder Público exigir alterações de projeto e de escopo em itens contratuais previamente definidos nos planos de negócios e nas metodologias de execução que compuseram as propostas vencedoras apresentadas à época das respectivas licitações, escorando-se ora em conceitos jurídicos indeterminados, como o princípio da prestação de serviço adequado, em especial sob o aspecto da atualidade – a cujo cumprimento as concessionárias de serviços públicos estão submetidas por força do artigo 6º da Lei Federal 8.987/1995 –, ora na necessidade de adequação a normas técnicas inexistentes no momento inicial da concessão, ora apenas em justificativas vagas, como o apelo à “satisfação do interesse público, em prol da experiência do usuário do serviço”.

É com base no oportunismo regulatório que o Poder Público, abusando da discricionariedade, em um comportamento mais voluntarista que responsável, frequentemente obriga concessionárias a modificarem premissas, características construtivas e, consequentemente, custos de diversas obras a serem implantadas ao longo da concessão, mesmo que os projetos originalmente apresentados (e nos quais se embasou a elaboração da proposta apresentada durante o certame licitatório) continuem atendendo aos requisitos técnicos e legais. E, o que é pior, sob o entendimento de que as alterações impostas não implicam em qualquer direito a reequilíbrio contratual. É difícil haver exemplo mais claro de dúvida que se abate sobre um passado pretensamente certo, seguro e previsível.

Para mitigar este tipo de incerteza, o melhor remédio consiste em aprimorar as matrizes de risco dos contratos de concessão, a fim de que delas passe a constar rubrica expressa e específica capaz de tratar o problema, à semelhança do que já ocorre com outros temas sensíveis, como desapropriações, inconformidades geológicas e variações cambiais. Na prática, é possível que a modelagem contratual preveja, por exemplo, a criação de bandas percentuais previamente estipuladas para dar conta de eventuais alterações de projeto requeridas pela Administração em decorrência de atualizações de normas técnicas, desejos de incrementos de capacidade, melhorias da segurança e questões similares. Sob esta perspectiva, tais alterações constituiriam risco atribuível à concessionária até o montante correspondente ao teto da banda contratualmente prevista. Ultrapassado o percentual-base, contudo, o risco seria alocado ao Poder Concedente (ou, no mínimo, compartilhado, também segundo métricas pré-definidas), ensejando, portanto, direito da concessionária à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

Soluções desta natureza, para além de enfrentarem de maneira concreta e profilática a eventual prática de oportunismo regulatório nas atividades de análise e aprovação de projetos, tornam mais clara a arquitetura contratual e cumprem bem o papel de reforçar a previsibilidade institucional e a segurança jurídica das concessões brasileiras de infraestrutura. Afinal, todos desejamos que o Ministro Pedro Malan seja para sempre reconhecido por sua obra e seus feitos, e não pelo axioma segundo o qual, em nosso país, até o passado é incerto.

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