Há exatos 30 anos, Bill Murray, em mais uma de suas magistrais interpretações, estrelou o já clássico filme “Feitiço do Tempo”. Nele, seu personagem fica aprisionado em uma espécie de túnel do tempo e se vê marcado a reviver dias e situações que, de forma ilógica e irracional, se repetem indefinidamente.
Pois bem: no Brasil, o setor de concessões de rodovias também parece, por vezes, condenado a sofrer desta mesma síndrome. Afinal, embora os primeiros contratos tenham sido celebrados há quase 30 anos, e de lá pra cá tenham evoluído enormemente, a chegada do modelo de concessão a novas regiões do País tem trazido de volta questionamentos que já pareciam superados, aumentando a insegurança jurídica para os investidores privados e as incertezas para a sociedade que vive e trafega nestes locais.
Assim, tem-se observado, recorrentemente, a volta do ajuizamento de demandas judiciais envolvendo temas que, em locais com cultura de concessão de rodovias já disseminada, não geram mais discussão e têm jurisprudência consolidada a favor da manutenção dos contratos nos termos previstos nos seus respectivos editais.
Dentre estas matérias, que agora reaparecem em concessões federais e estaduais situadas em Estados nos quais este regime contratual é novidade, é possível citar:
- a busca de isenção de pedágio para moradores de municípios onde serão instaladas novas praças;
- o impedimento de cobrança de pedágio antes que toda a extensão do trecho concedido venha a ser restaurada ou duplicada;
- a imposição, via ação judicial, da execução de novas obras não previstas nos documentos licitatórios, tais como duplicações de trechos e construção de vias marginais em áreas urbanas;
- a proibição de implantação de praças de pedágio pelo simples fato de haver certa espécie de comunidades lindeiras à faixa de domínio da rodovia, mesmo se o edital e o contrato contiverem previsões de preservação ambiental e das condições de vida destas populações.
Apesar da boa-fé e do louvável desejo de melhoria da infraestrutura rodoviária que caracterizam estas ações, é importante deixar claro que o modo como elas são manejadas ignora, muitas vezes, os procedimentos legais que marcam a realização de licitações complexas como as de concessões rodoviárias. Esses certames são pautados em regramento extremamente rígido, que contempla etapas obrigatórias de participação social, como a realização de audiências e consultas públicas. Nessas ocasiões, toda a sociedade e seus órgãos de representação são legitimados e, mais do que isso, bem-vindos a apresentar alternativas, opiniões e eventuais objeções. Todos os projetos, inclusive, são aperfeiçoados após estes eventos, para incorporar esta espécie de demanda.
Portanto, é preciso que, de um lado, os agentes públicos e privados responsáveis pela estruturação de projetos de concessão, cada vez mais, ofereçam, antes da publicação do edital e da realização da licitação, espaço e interlocução a todos os stakeholders envolvidos, de modo que não se possa alegar surpresa ou desconhecimento das normas que balizarão a futura concessão. Afinal, é nestas normas, previamente divulgadas para conhecimento geral, que constarão os valores das tarifas de pedágio, a localização das praças, o cronograma de obras, o momento de implantação e início da cobrança, a previsão sobre grupos de usuários aptos a descontos e isenções etc.
Entretanto, se, ainda assim, forem movidas ações judiciais para discutir um ou vários desses temas, causando impacto econômico-financeiro no projeto da concessão, é fundamental que a matriz de riscos do contrato preveja – como de fato já prevê – a aplicação de mecanismos de reequilíbrio de forma clara e transparente, a fim de mitigar a insegurança jurídica advinda da judicialização destes assuntos. Para alguns deles, inclusive, as gerações mais recentes de contratos trouxeram inovações específicas e bem-sucedidas, como o chamado “Desconto de Usuário Frequente – DUF”, por meio do qual motoristas que trafegam em praças de pedágio com alta assiduidade são elegíveis a descontos tarifários robustos após um certo número de passagens.
Essas medidas mitigadoras, tomadas de forma pró-ativa, podem ajudar a evitar que as concessões rodoviárias brasileiras, tal como Bill Murray em O Feitiço do Tempo, sejam condenadas a viver um eterno Dia da Marmota, despendendo esforços que poderiam ser canalizados para a melhoria do serviço público concedido, com a defesa de ações cuja fundamentação, frequentemente, é bastante frágil.