Concessões rodoviárias: como evitar a exuberância irracional?

O Brasil vive a Era de Ouro das concessões rodoviárias. Mas, neste ambiente de entusiasmo generalizado, há importantes lições de casa a serem feitas.

O ano era 1996. O mundo assistia, entre atônito e mesmerizado, à expansão vertiginosa da Internet e das então chamadas “empresas pontocom”, cujo valor de mercado ascendia de forma exponencial em um ritmo alucinante. O clima de otimismo com uma sociedade mais próspera, moderna e eficiente pairava no ar. Entretanto, em meio a essa atmosfera de euforia, um personagem resolveu arvorar-se do papel de “chato da festa”. 

Tratava-se – ninguém mais, ninguém menos – de Alan Greenspan, o então todo poderoso e hoje lendário Presidente do Federal Reserve, o Banco Central norte-americano. Do alto de sua ampla experiência e com a certeza de ser uma das vozes mais respeitadas e influentes de seu tempo, Greenspan discursou sobre “O desafio dos Bancos Centrais em uma sociedade democrática” e lançou um balde intelectual de água fria na fervura do entusiasmo global. Seu vaticínio veio acompanhado de uma expressão, por ele cunhada e eternizada dali por diante: era preciso que o mercado acionário e a Economia de um modo geral se precavessem contra o que chamou de Exuberância Irracional.

O termo “Exuberância Irracional”, desde então, tem sido amplamente mencionado como um estado de espírito a ser evitado em ambientes e momentos de otimismo generalizado – nas finanças, nas cadeias produtivas, na saúde e até no esporte. Mas por que começamos nossa conversa com estas divagações? A resposta é simples e de imediata assimilação. Bastará a mim pronunciar a próxima frase – que, alás, contém uma verdade factual absoluta e indiscutível. Lá vai: estamos vivendo a Era de Ouro das concessões rodoviárias no Brasil!

Sob qualquer critério que elejamos, seja qual for a métrica empregada, esta constatação é incontroversa. Em 2025, haverá recorde de quantidade de leilões de concessão, recorde de investimentos contratados, recorde de grupos econômicos concessionários, recorde de entes subnacionais com lotes licitados e concedidos. Trata-se de um panorama nunca experimentado desde a assinatura do primeiro contrato de concessão rodoviária firmado com a iniciativa privada em nosso país – o da Ponte Rio-Niterói, há exatos 30 anos, em 1º de junho de 1995. 

O quadro, de fato, é único e o otimismo setorial, amplamente justificado. Entretanto, este também é o momento de invocar a lição de Greenspan: é preciso ter cuidado e cautela para evitar que o ecossistema das concessões rodoviárias brasileiras corra o risco de padecer – batamos na madeira – da maldição da Exuberância Irracional. Vamos propor, então, um breve guia contendo planos de ação e recomendações de boas práticas jurídicas, regulatórias e institucionais, cujo cumprimento ajudará a perenizar, sem maiores sobressaltos, o atual ciclo virtuoso setorial? Os tópicos a respeito dos quais discorrerei a seguir buscarão – sem a pretensão de esgotar a matéria – sistematizar e endereçar os principais temas. São eles:

  • Aprimoramento contínuo das modelagens dos projetos: as gerações mais recentes de contratos de concessão rodoviária são fruto de modelagens sofisticadas, cujos autores, a partir de uma curva de aprendizagem de três décadas, têm se preocupado em prever soluções técnicas, econômico-financeiras e jurídicas capazes de dar conta dos desafios próprios de avenças de longo prazo. Esta prática necessita de constante aperfeiçoamento, a fim de manter os instrumentos contratuais sempre no estado da arte; 
  • Sofisticação e sintonia fina da regulação: para fazer frente a contratos mais robustos e modernos, demanda-se constante aperfeiçoamento da regulação setorial. A edição recente de normas complexas e abrangentes, como os Regulamentos de Concessão Rodoviária da ANTT e o mecanismo de Reequilíbrio Cautelar introduzido pela ARTESP, hoje já disseminado, são bons exemplos do esforço de melhoria do ambiente regulatório;
  • Acompanhamento atento da governança de execução contratual: com a multiplicação de novos contratos de concessão, vem a profusão da celebração de contratos de construção, ligados à execução dos investimentos previstos em cada caso. A história do programa brasileiro de concessões rodoviárias ensina que a relação entre concessionárias e construtoras responsáveis pelo CAPEX contratual é um ponto de extrema atenção, capaz de determinar o sucesso ou o fracasso dos projetos, demandando atuação proativa e responsiva de todos os stake holders envolvidos, nas esferas pública e privada;
  • Reconhecimento da influência do cenário macroeconômico sobre a performance dos contratos de concessão: é preciso fazer valer, continuamente, as lições aprendidas ao longo do tempo a respeito da relação umbilical entre as condições gerais da Economia e o cenário de execução dos projetos, de modo a garantir condições aceitáveis de financiabilidade (mesmo em cenários desfavoráveis), prever mecanismos de salvaguarda e conferir permeabilidade jurídica e institucional e reequilíbrios contratuais que sejam inevitáveis fruto de deterioração imprevisível de expectativas;
  • Adequação a inovações tecnológicas e práticas de ESG: as concessões rodoviárias são um setor cujo adequado funcionamento está incontornavelmente ligado a constantes inovações tecnológicas e à ampliação de práticas que privilegiem o tripé meio ambiente-sustentabilidade-governança. Isso deve estar refletido, de forma contínua e perene, nos contratos, nas normas de regulação e na atuação das concessionárias, de seus parceiros, dos poderes concedentes e dos órgãos reguladores e controladores. E, por fim, mas não menos importante:
  • Reforço – qualitativo e quantitativo – da força de trabalho nos órgãos reguladores: em um cenário de grande incremento no número de projetos e contratos de concessão, a necessidade de os poderes concedentes contarem com órgãos reguladores bem estruturados, compostos de pessoal em quantidade adequada e dotado de ampla capacitação e expertise técnica, é um desafio que o Poder Público precisará enfrentar e vencer. Afinal, regulação robusta é pressuposto de previsibilidade, segurança jurídica e perenidade dos investimentos privados.

Como se pode perceber, o setor de concessões rodoviárias, embora inegavelmente esteja vivendo sua Era de Ouro no Brasil – e, de modo paradoxal, exatamente por esta razão –, precisa se manter atento e forte, porque somente assim estará protegido da maldição da Exuberância Irracional. Do contrário, como diria o poeta Cazuza, veremos o futuro repetir o passado e assistiremos a um museu de grandes novidades.  O tempo não para.

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