Desafios urgentes da mobilidade urbana

Para atender adequadamente os usuários, investimentos significativos devem ser realizados, com urgência, em bons projetos. Como resolver esse gargalo?

Não é preciso ir muito longe para destacar a relevância do tema mobilidade urbana no cenário nacional. Basta mencionar que os eventos de 2013, ponto importante de inflexão na política nacional, iniciaram a partir de discussão acerca do valor da tarifa do transporte público.

É bastante evidente a relação direta existente entre mobilidade urbana e a qualidade de vida da população, o acesso a serviços essenciais e ao mercado de trabalho. A sua relevância levou o transporte a ser incluído entre os direitos sociais consagrados no texto constitucional. Também é claro o descompasso entre a infraestrutura de transporte coletivo de média e alta capacidade e o crescimento urbano e a densidade populacional das principais regiões metropolitanas do país.

Essas questões são analisadas nas conclusões parciais de estudo do BNDES (Estudo Nacional de Mobilidade Urbana – ENMU) que está sendo elaborado em parceria com o Ministério das Cidades. O estudo analisa a situação do transporte urbano de média e alta capacidade ─ compreendendo projetos de metrô, trens urbanos, VLTs, BRTs e corredores exclusivos ─ nas 21 principais regiões metropolitanas do país.

Os investimentos necessários, de acordo com o BNDES, são bastante significativos para que as regiões metropolitanas avaliadas possam aumentar significativamente o RTR (Rapid Transit to Resident) e se aproximarem das cidades com bom nível de transporte coletivo de média e alta capacidade. Considerando o crescimento populacional das regiões metropolitanas estimado até 2054, seria necessário dobrar a extensão da rede metroviária e quadruplicar os sistemas de VLT e BRT. O estudo prevê mais 323 km de linhas de metrô, 96 km de trens urbanos, 1.930 km de sistemas de BRT, VLT ou monotrilho, e 157 km de corredores de ônibus.

O transporte coletivo também precisa lidar com outro desafio. Entre 2014 e 2023, houve redução de 44% da quantidade total de passageiros que utilizam o transporte público. Isso implicou o transporte de quase 20 milhões de passageiros pagantes por dia a menos, em comparação a 2014. Significativa parcela desses passageiros migrou para o transporte individual motorizado.

Entre outros fatores, a migração decorre da ausência de projetos significativos e de planejamento no transporte coletivo, que deixou de oferecer soluções confortáveis e eficientes. Essa queda foi influenciada pela pandemia (a redução foi de mais de 25% na comparação apenas entre 2019 e 2023), mas a diminuição da demanda já estava sendo verificada. Trata-se da constatação de que o transporte público em geral não atende adequadamente a população, que sai em busca de alternativas.

Isso tudo agrava o contexto: em um momento em que já há dificuldade de realização de investimentos, há a redução da demanda, a principal fonte de receita. Por isso, uma das metas a serem atingidas, segundo o BNDES, é a preservação ou aumento da participação do transporte de média ou alta capacidade no conjunto de deslocamentos da população, por ser uma solução mais eficiente e sustentável. Deve ser revertida a tendência de uso de modos motorizados individuais.

Em recente evento que tratou do tema a partir do estudo do BNDES, foi constatado que o maior desafio da mobilidade urbana é a escassez de projetos qualificados[1].

A existência de bons projetos é o maior desafio porque a modelagem é extremamente complexa, dada a quantidade de fatores a serem considerados. Especialmente quando se trata de sistemas de metrô e de trens urbanos, o elevado nível de capital demandado e a alta complexidade para implantação dos projetos elevam sobremaneira a dificuldade de se obterem projetos viáveis e adequados.

O primeiro passo é o planejamento, necessário para o desenvolvimento de uma política de Estado voltada ao atendimento do transporte como direito social dos cidadãos. O planejamento deve considerar políticas urbanas de longo prazo, para se assegurar que os investimentos continuem sendo feitos de modo a manter o serviço atualizado e adequado para atender às necessidades da população.

O planejamento em mobilidade urbana deve ser integrado com os diversos entes federativos envolvidos, sendo necessária a atuação coordenada de União, Estados e Municípios. A governança metropolitana fragmentada, com ausência de coordenação, é um complicador para o desenvolvimento de projetos de longo prazo. Das 21 regiões metropolitanas analisadas no estudo do BNDES, em 13 não foram identificadas experiências de gestão coordenada do transporte coletivo.

Atenção especial deve ser dada à sustentabilidade econômica do projeto.

A questão tarifária é extremamente relevante. O valor da tarifa deve ser acessível e adequado ao perfil médio dos usuários de cada cidade. Integração tarifária nas regiões metropolitanas, com o pagamento de tarifa única quando viável, é necessária para que a rede de transportes seja eficiente. Deve ser buscada uma maior participação de receitas alternativas, de modo a reduzir a representatividade da receita tarifária entre as fontes de recursos do projeto. Nos sistemas de metrôs e trens urbanos, existe a possibilidade de aumentar o retorno com a utilização dos espaços das estações e imóveis no seu entorno, inclusive com a opção de venda de naming rights de trechos e estações.

Outra constatação é que o subsídio da tarifa de transporte coletivo urbano é necessário. É praticamente inevitável depender de subsídios, tendo em vista a impossibilidade de se transferirem todos os custos para os usuários. Houve aumento recente das cidades que subsidiam a tarifa do transporte público. Porém, a média de subsídios no país, de 30% do custo total dos serviços, é inferior ao patamar médio internacional de 55%. Subsídios dependem da identificação da fonte de recursos, propiciando segurança jurídica para o investidor com observância das regras orçamentárias e de responsabilidade fiscal ─ o que implica mais um desafio para a viabilidade do projeto.

Devem ser considerados os impactos ambientais da obra e da sua operação, procurando-se soluções sustentáveis. A eletrificação da frota é um passo relevante, que demanda a adaptação de toda a infraestrutura. Os projetos devem também ser resilientes às possíveis mudanças climáticas.

Por fim, os projetos devem resultar atraentes e competitivos para a iniciativa privada, com condições adequadas de financiamento – tanto para a fase de construção quanto para a de operação. Por exemplo, a contratação de financiamentos pelo poder público já na fase de licitação propicia maior segurança jurídica aos licitantes quanto à efetiva disponibilização desses recursos.

Diante disso, é fácil entender a escassez de bons projetos de mobilidade urbana no país. Não é nada fácil conciliar todos esses fatores e obter um projeto viável e atraente para a iniciativa privada.

A conjugação de serviços distintos pode ser uma alternativa interessante. Exemplo disso é o do Trem Intercidades – Eixo Norte do Estado de São Paulo. O Eixo Norte é a primeira de quatro linhas de TICs (Trens Intercidades) a serem implementadas. São trens de média velocidade, projetados para conectar a capital com cidades grandes e médias do interior.

Foi necessário ajustar o projeto inicial para aumentar o aporte inicial e reduzir a contraprestação e a tarifa, de modo a viabilizar o TIC. O edital foi republicado com aumento do aporte inicial do Estado, na fase de construção, de R$ 6 bilhões para R$ 8,5 bilhões. É uma parcela relevante do projeto, que tem investimentos totais previstos na ordem de R$ 13,5 bilhões.

Um dos destaques da modelagem do TIC – Eixo Norte é a inclusão de um trecho operacional, a Linha 7 do Metrô de São Paulo, para ajudar a garantir os recursos para o financiamento da operação. O contrato do TIC abrange três serviços: a Linha 7 do Metrô, o TIM (Trem Intermetropolitano) ─ serviço parador entre Jundiaí e Campinas ─, e o TIC em si, entre São Paulo e Campinas. A Linha 7 já está em operação e passará por adequações, devendo ser assumida pela concessionária do TIC no final de 2025.

A demanda da Linha 7 é muito superior à dos demais serviços do TIC. Por exemplo, a projeção de demanda que embasou os estudos da licitação considera que, ao final do prazo da concessão, a Linha 7 terá uma demanda de cerca de 500 mil passageiros/dia e os demais serviços juntos terão pouco mais de 200 mil passageiros/dia. Já a receita conjunta dos serviços da Linha 7 e do TIM deverá ser equivalente à do serviço expresso, o TIC.

Outro diferencial do projeto é o pagamento por disponibilidade. É aplicável aos serviços da Linha 7 e do TIM. Baseia-se na disponibilidade e qualidade dos serviços. Ou seja, não há risco de demanda para a concessionária nesses serviços. Ela receberá uma parcela fixa mais uma parcela variável (de acordo com a quilometragem rodada), as quais poderão sofrer deduções conforme o cumprimento dos indicadores de desempenho. Já para o TIC, há o compartilhamento do risco de demanda caso fique fora da banda entre 90% e 110%. A falta de referência para a demanda do serviço torna ainda mais necessário o compartilhamento desse risco.

Somando esses dois mecanismos ─ pagamento por disponibilidade e compartilhamento de risco de demanda ─, a estimativa é de que cerca de 96% das receitas tarifárias do projeto estejam garantidas para a concessionária.

Portanto, o sucesso do TIC dependeu da conjugação de diversos fatores: a licitação conjunta de três serviços, sendo um deles já operacional, estrutura tarifária com boa parcela da receita garantida para a concessionária e elevado volume de aporte público. Mostrou que viabilizar bons projetos é possível, mas o desafio é bastante complexo.


[1] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XUpHss8tigw&t=2s

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