O tema é polêmico, sem dúvidas. Na prática, porém, é comum que a administração pública, sobretudo a municipal e em cidades de menor porte, socorra-se dos conhecimentos técnicos de empresas privadas para elaboração de cláusulas e editais de licitação.
Nesse ponto, uma distinção é necessária. Não se está aqui defendendo ou examinando aquela conduta do administrador público que procura a empresa privada para elaboração de um edital com cláusulas encomendadas, dirigidas, voltadas à exclusão de demais pretensos competidores. Não é essa óbvia hipótese de fraude ao caráter competitivo da licitação que se quer abordar.
Trata-se, em verdade, de uma reflexão sobre situações que, na prática da administração pública, frequentemente ocorrem. A administração pública se depara com situações em que não possui conhecimento técnico específico suficiente para a contratação de serviços ou produtos, tratando-se de conhecimentos não exigidos pelo cargo público.
Tais tecnologias e conhecimentos específicos, de outro lado, são de domínio e exclusivas de empresas particulares (fabricantes de peças e produtos, fornecedores, prestadores de serviços especializados e complexos, como os de transportes terrestres, coleta e destinação de resíduos sólidos, dentre outros).
Em situações como essa, em que o Município, geralmente de pequeno porte, é carecedor de setores que detenham conhecimento e tecnologia para um determinado produto ou serviço específico e de interesse público, há frequente interpretação equivocada nas hipóteses em que a administração pública busca, perante o particular, essas informações.
As circunstâncias desse diálogo normalmente são conduzidas pelos departamentos ou comissões de licitações das prefeituras que, por ofícios, e-mails ou outros meios de comunicação destinados a integrantes das empresas privadas, buscam informações sobre como elaborar o certame para contratação de semelhante produto ou serviço fornecido por aquele particular.
A crítica que aqui se faz é que, num cenário idealizado, não haveria o contato entre o ente público e o privado para tratar de questões técnicas de processos licitatórios. A realidade do país é outra, no entanto. Distribuído nos 27 Estados da federação brasileira, o país se ramifica em mais de 5.570 municípios de administração pública direta, segundo dados do IBGE divulgados em julho de 2024. Desses numerosos municípios, a maior parte deles não possui conhecimento específico sobre características dos produtos e serviços a serem contratados para a população local.
Defende-se, com efeito, que a simples consulta do órgão público ao particular, com a finalidade de esclarecer pontuais dados tecnológicos, quantitativos, ou especificações exclusivamente técnicas que o fornecedor detém, não pode, em todos os casos, ser cabalmente interpretada como fraude à licitação ou direcionamento de certame.
A hipótese se assemelha à previsão normativa do artigo 6º, inciso XLII, da Lei 14.133/2021, que inseriu nova modalidade de licitação denominada diálogo competitivo. Nessa hipótese, a administração “realiza diálogos com licitantes previamente selecionados mediante critérios objetivos, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades, devendo os licitantes apresentar proposta final após o encerramento dos diálogos”. Note-se que, no artigo 32 da lei, esclarece-se que o diálogo competitivo será pertinente nos casos em que haja “impossibilidade de as especificações técnicas serem definidas com precisão suficiente pela Administração”.
De modo ainda incipiente, a legislação reconheceu o aspecto central desta situação – a carência de domínio técnico e científico da administração pública para determinados bens e serviços. Ainda, houve significativo avanço da legislação para regulamentar o diálogo entre a administração e o particular, transformando-o, inclusive, em uma nova modalidade de licitação.
Questões práticas como a presente devem ser observadas com cautela, principalmente porque podem ser importantes aspectos reveladores da presença, ou não, do delito de fraude ao caráter competitivo nas licitações.